Para Waldemar Gonçalves Ortunho Júnior, lei “pegou”, mas ainda faltam estrutura e recursos
Bárbara Pombo
O movimento de adequação das empresas à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) deve ser acelerada, a partir de agora, com o início da aplicação das sanções por descumprimento à norma. Quem afirma é Waldemar Gonçalves Ortunho Júnior, diretor-presidente da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), autarquia responsável pela fiscalização da lei, que completa hoje cinco anos de edição.
Em entrevista ao Valor, ele reconhece que a velocidade de resposta do órgão “ainda deixa a desejar”. A primeira multa foi aplicada apenas em julho deste ano. “Foi um recado de que a lei pegou”, diz ele, que, porém, evita se comprometer com prazos para decisões em outros nove processos administrativos pendentes.
Apesar de editada há cinco anos, a LGPD passou por um período de carência para adaptação do mercado. Entrou em vigor há cerca de três anos. A ANPD só começou a ser estruturada em 2020.
Engenheiro eletrônico e coronel do Exército indicado ao cargo pelo então presidente Jair Bolsonaro, Ortunho Júnior tem feito pressão sobre o governo federal para melhorar a estrutura da ANPD – hoje com 150 funcionários e um orçamento, para este ano, de pouco mais de R$ 26 milhões. Ele terá mandato até novembro de 2026.
Apesar da estrutura enxuta e ainda em um processo incipiente de aplicação da LGPD, a ANPD tem pleiteado mais uma competência: a de fiscalizar a complexa área de inteligência artificial, cuja regulação está sob análise no Senado (Projeto de Lei nº 2.338, de 2023).
“Vemos, de forma natural, que a ANPD seja a autoridade-chave para o tema”, afirma. Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista:
Valor: Em que estágio o Brasil está em termos de proteção de dados pessoais?
Waldemar Gonçalves Ortunho Júnior: Estamos em diferentes níveis. A grande empresa já está bem adequada à LGPD. As pequenas e médias ficaram naquela dúvida: “será que isso vai pegar?” E pegou. A primeira multa saiu por um incidente em empresa de pequeno porte, então acho que não tem mais essa dúvida. Os órgãos públicos têm mais dificuldade em termos de contratação, tudo é mais lento. Acredito que seja o fator de existir mais processos sancionadores em cima de órgãos públicos. Mas o recado foi dado. A tendência agora é o início do sancionamento acelerar ainda mais esse processo de adequação.
Valor: Há um estoque de nove processos aguardando decisões, quase todos envolvendo órgãos públicos. Quando elas serão publicadas?
Ortunho Júnior: A ANPD é pequena, então falar em previsões é muito complicado. Os processos são diferentes e de complexidades diferentes. A próxima [decisão] está bem adiantada. Mas eu não posso dar uma previsão, seria algo sem nenhuma certeza. Então eu prefiro dizer que estamos trabalhando. O importante é que seja algo justo, assertivo e que todas as oportunidades sejam dadas para a outra parte. Isso que é fundamental para a ANPD.
Valor: Há uma expectativa do mercado por essas publicações, que servem como orientação em termos de adequação à lei.
Ortunho Júnior: Sim, pelo exemplo. O objetivo não é sair sancionando empresas que não se adequarem. Acho que o principal é mostrar que é uma operação ganha-ganha: o titular, que tem os seus dados respeitados, e a empresa, que, além de estar adequada, vai mostrar que possui essa preocupação e responsabilidade com o tratamento de dados pessoais. Para a ANPD, o pior dos mundos é alguma coisa coercitiva como o sancionamento. No caso envolvendo o WhatsApp e o Facebook [sobre a nova política de privacidade do aplicativo de mensagens], a primeira alternativa foi montar um pool de órgãos. ANPD, Cade, Ministério Público e Senacon fizeram uma atuação em conjunto. No aspecto transparência do site, conseguimos dar ao usuário um retorno mais rápido, houve uma mudança na plataforma mundial do Facebook para atender aos requisitos que a ANPD solicitou em termos de transparência. O usuário que quer fazer alguma coisa em relação aos seus dados, de uma forma mais fácil, consegue acessar os pontos dentro do site para fazer essas mudanças.
Valor: A ANPD já recebeu 636 comunicações de incidentes de segurança e 2.313 denúncias e petições. Concluiu 16 processos de fiscalização, outros 13 estão em andamento e há nove processos sancionadores, com uma sanção aplicada em primeira instância. Como o senhor avalia as entregas da ANPD?
Ortunho Júnior: Muitas vezes a denúncia e a petição são inapropriadas para o momento. Sempre orientamos que o primeiro passo é o titular buscar o órgão que teve incidente de dados. Se [a empresa] não tomou as providências, entra-se em contato com a ANPD. Por ser pequena, a nossa equipe dá prioridade para aquilo que oferece mais risco. Fazemos seleção para atendimento.
Valor: A estrutura da ANPD está aquém do que seria necessário?
Ortunho Júnior: Estamos desenvolvendo um trabalho para a execução de um concurso público. Seriam 215 posições e ainda estamos em negociação com o governo mostrando essas necessidades. Não tem sentido agora a ANPD, que está com todas suas as atividades, ficar com uma equipe tão pequena. Comparo com outras autoridades internacionais de países menores que possui quadro de funcionários com mais de mil pessoas. Ainda estamos com 120 profissionais requisitados de outros órgãos. Na área meio são mais 30, ou seja, são 150 pessoas trabalhando. Mas necessitamos de um concurso público para dar estrutura mais profissional para essa autarquia especial. Não tenho hoje um auditor formado, uma assessoria parlamentar. Já há previsão na LOA [ Lei Orçamentária Anual], no orçamento para o próximo ano, mas ainda necessitamos de uma celeridade nessas ações junto à Casa Civil, ao Congresso Nacional e ao nosso próprio Ministério da Justiça [pasta na qual a ANPD é vinculada].
Valor: A ANPD já firmou posição que pode ser autoridade-chave para atuar na fiscalização e governança da inteligência artificial no Brasil, a partir da proposta de regulação que está em discussão no Senado. Não é temerário ganhar mais uma competência com uma estrutura enxuta e uma fiscalização e aplicação ainda incipiente da LGPD?
Ortunho Júnior: Vemos, de forma natural, que a ANPD seja a autoridade-chave para o tema. Você tem uma nova tecnologia que é alimentada por dados, na sua maioria é onde oferece maior risco quando envolve dados pessoais e sensíveis. Inteligência artificial é um assunto muito próximo de proteção de dados. São áreas bem parecidas entre uma autoridade de inteligência artificial e a ANPD. Essas semelhanças podem gerar grandes conflitos se houver duas autoridades falando sobre o mesmo tema. Se olharmos internacionalmente, reforçamos essa convicção. Diversas autoridades no mundo têm tratado desse tema. Reino Unido, Singapura e Espanha têm atribuído às autoridades [de proteção de dados] a fiscalização para não haver discriminação de algoritmo da inteligência artificial e projetos, como sandbox.
Valor: Qual a vantagem de atrair mais essa atribuição para a ANPD?
Ortunho Júnior: Sentimos na pele e estamos sentindo até hoje o que é montar uma nova autoridade. Acho que é melhor pegar uma estrutura que já conhece e trata do tema na área de proteção de dados. E aí sim, temos que fortalecer a estrutura, ampliar o quadro através de concursos, de carreira própria. Não partir do zero é um ganho de velocidade, de conhecimento de capacitação que não merece ser desprezado.
Valor: O senhor afirmou que a prioridade tem sido fiscalizar atividades que oferecem maior risco aos titulares dos dados. Quais setores têm sido mais observados pela ANPD?
Ortunho Júnior: Temos um canal de comunicação com nossa auditoria e os dados são classificados a partir daí, é onde a gente monitora onde há maior necessidade de intervenção. Na nossa agenda regulatória de 2023-25 definimos 20 pontos a serem tratados de uma forma mais próxima, com maior celeridade. Quando surge algo que não está nessa listagem passamos a tratar como guias ou estudos técnicos. Fizemos isso com farmácias, sentimos que o setor farmacêutico estava provocando alguns desconfortos à sociedade, chamamos as associações e estamos passando para nossa fiscalização tratar deste tema. Estamos vendo agora a inteligência artificial e a coleta de biometria facial como pontos que estão merecendo o mesmo tratamento diferenciado. Na parte de empresas, o que também que nos traz preocupação são dados de crianças e adolescentes. A pandemia aumentou a conectividade. Os alunos, para não perderem aula, passaram a utilizar alguns aplicativos. Nós tivemos denúncias de que, após as aulas, esses aplicativos continuavam monitorando os alunos. Estamos investigando.
Valor: Quais os desafios futuros para garantir maior efetividade da lei?
Ortunho Júnior: Nesses dois anos e meio capacitamos o nosso grupo, entendemos o mercado, conquistamos o espaço nacional e internacional – temos pedidos de reuniões de agências ou autoridades internacionais que estão há mais tempo atuando, mas que estão vendo a modernidade das ações da ANPD como um exemplo a seguir. Nosso grande desafio agora é convencer o governo a dar maturidade à ANPD através de uma carreira própria, de concurso público, com uma mão de obra maior e mais capaz de atender o mercado nacional. O país é grande, não tem empresa ou órgão público que deixe de trabalhar com dados pessoais, então nós temos necessidade de ter uma equipe e um orçamento maiores para fornecer mais resultados. Os resultados são bons, as entregas são boas, mas eu acho que a velocidade ainda deixa a desejar em função da pequena estrutura.
Fonte: Valor Econômico, 14 de agosto de 2023