TST afasta prescrição em caso de trabalho doméstico em condição análoga à escravidão

Empregada foi mantida por 20 anos em uma casa de família; indenizações impostas ultrapassam meio milhão de reais

Beatriz Olivon

O Tribunal Superior do Trabalho (TST) manteve a condenação de uma família de São Paulo (SP) por manter, por mais de 20 anos, uma empregada doméstica em condições consideradas análogas à escravidão. Pela decisão da 2ª Turma, os patrões deverão pagar todos os direitos trabalhistas devidos desde 1998, além de indenizações de R$ 350 mil por danos morais individuais e R$ 200 mil de indenização por dano moral coletivo.

A Turma, por unanimidade, afastou a prescrição trabalhista, que restringe os pedidos aos cinco anos anteriores ao término do contrato. Na decisão, a Turma ressaltou a imprescritibilidade do direito absoluto à não escravização.

A ação foi ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e pela Defensoria Pública da União (DPU) a partir de denúncia feita pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos em 2020. De acordo com a denúncia, no endereço da família havia uma trabalhadora idosa vítima de violência, maus tratos, tortura psíquica e exploração. Ainda segundo a denúncia, a idosa estaria trancada no local.

Depoimentos no processo indicam que a vítima havia começado a trabalhar para a família em 1998, sem registro na carteira de trabalho. A partir de 2011, passou a morar com a família e a receber irregularmente, chegando a ficar meses sem salário. Em 2015, a família se mudou para a casa onde ela foi resgatada. Segundo seu relato, ela não recebia refeições e seu último salário havia sido de R$ 300.

A família alegou no processo que, entre 1998 e 2011, a trabalhadora havia prestado serviços como diarista em várias residências e, em 2011, perdeu sua casa numa enchente. Por isso, eles tinham oferecido um lugar para ela morar, sem prestar nenhum serviço. Segundo eles, o cômodo que a idosa ocupava nos fundos da casa não era uma residência, mas um “local temporário” para ela guardar seus pertences.

A dona da casa foi presa em flagrante por abandono de incapaz e omissão de socorro e indiciada pelo crime de reduzir alguém a condição análoga à de escravo (artigo 149 do Código Penal).

Decisão

O juízo de primeiro grau reconheceu que os patrões haviam submetido a trabalhadora a condições análogas ao trabalho escravo, abusos psicológicos, desrespeito moral e abandono. Também foi fixada indenização por danos morais e danos morais coletivos, a serem revertidos ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), além de reconhecer o vínculo de emprego desde 1998.

O TRT-2 manteve a condenação e majorou as indenizações para R$ 350 mil e R$ 300 mil. No recurso ao TST, os empregadores pretendiam reverter a condenação.

Na 2ª Turma, o voto da ministra Liana Chaib considerou que nos casos envolvendo crime contra a humanidade e grave violação aos direitos fundamentais, a norma geral sobre a prescrição trabalhista deve ser interpretada sistematicamente. Para a ministra, na hipótese excepcional de submissão de trabalhador à condição análoga à de escravo, a restrição da liberdade moral e até mesmo física não permite buscar a reparação de seus direitos.

Para a relatora, a situação se agrava ainda mais quando ocorre em ambiente doméstico, em que a trabalhadora é mantida em situação de dependência e exploração e até enganada pela justificativa de que seria “como se fosse da família”. A ministra lembrou que a questão é tão relevante que a Procuradoria-Geral da República (PGR) ajuizou ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para que esse crime seja imprescritível.

Quanto à caracterização do trabalho em condição análoga à de escravidão, a ministra considerou que essa classificação penal não abarca só o trabalho forçado com privação da liberdade, mas também a sujeição a jornada exaustiva e condições degradantes de trabalho. O acórdão foi publicado hoje.

Fonte: Valor Econômico, 27 de outubro de 2023

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