Tribunais estaduais mantêm validade de contratos de franquia

Maioria afasta a aplicação da Lei nº 14.879/2024 sobre a definição do local para resolução de conflitos, diz pesquisa do BMA

Laura Ignacio

Os tribunais estaduais brasileiros têm decidido a favor da manutenção das cláusulas contratuais que definem onde eventuais conflitos entre franqueadores e franqueados devem ser resolvidos. Desde julho de 2024, uma nova legislação trouxe requisitos obrigatórios para a chamada “eleição de foro”. Se descumpridos, a prática pode ser considerada “abusiva”.

Levantamento do BMA Advogados, que analisou 70 decisões judiciais sobre o assunto, proferidas entre julho de 2024 e maio deste ano, mostra que 73% delas mantiveram a disposição contratual. Foram verificadas decisões de 14 tribunais estaduais.

As regras mudaram no ano passado. A Lei nº 14.879 alterou um dispositivo do Código de Processo Civil (CPC) e introduziu critérios cumulativos para a validade dessas cláusulas. O artigo 63 passou a exigir que: a eleição do foro onde litígios serão resolvidos seja formalizada obrigatoriamente por escrito; a cláusula terá que mencionar a qual negócio jurídico específico se refere; e o local estabelecido terá que ter a ver com as partes ou onde a atividade é realizada.

Por isso, desde que a nova legislação entrou em vigor, em julho do ano passado, franqueadores passaram a temer que todos os contratos tivessem que ser alterados ou que franqueados levassem o assunto ao Judiciário. Hoje, o franchising brasileiro reúne mais de 197 mil operações, cerca de 3,3 mil marcas e movimentou só em 2024 aproximadamente R$ 273 bilhões, com geração de mais de 1,7 milhão de empregos diretos.

Segundo o levantamento, embora a norma já estivesse em vigor quando acórdãos analisados foram prolatados, só 24% deles abordaram a reforma legal e analisaram o artigo 63 da nova lei. “Considerando que a demanda foi ajuizada após o advento da Lei nº 14.879/2024, constata-se que, por força do princípio tempus regit actum, o presente processo submete-se integralmente às disposições da nova legislação, independentemente da data da cláusula de eleição de foro”, afirma o desembargador Roberto Maia, relator na 20ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP).

“O ajuizamento em juízo aleatório, compreendido como aquele que não tem vinculação com o domicílio das partes ou com o negócio jurídico discutido na demanda, passou a ser reputado como prática abusiva”, complementa o magistrado. A decisão foi unânime (agravo de instrumento nº 2295795-78.2024.8.26.0000).

De acordo com Tatiana Dratovsky Sister, sócia da área de Contratos Comerciais e Franquias do BMA Advogados, os clientes queriam saber se “a lei pegou”, especialmente os franqueadores. Isso porque uma corrente jurídica diz que o franqueado, por assinar contrato padrão da rede de franquia, não teria espaço para negociação e deveria ser tratado como “vulnerável”. Assim, na prática, a nova norma poderia levar o Judiciário a atender os pedidos dos franqueados.

“Na minha opinião, franqueado é empresário e nada hipossuficiente, mas como existe essa corrente resolvemos pesquisar”, afirma Tatiana. “Dos 70 acórdãos selecionados, após busca em 26 Estados, vimos que a concentração está em São Paulo (19), Santa Catarina (15), Rio de Janeiro (7) e Paraná (7)”, aponta.

Ainda de acordo com a pesquisa do BMA, os fundamentos mais comuns para a manutenção da cláusula foram: não há partes vulneráveis (31); foi aplicada a Súmula 335 do STF, que valida cláusula de eleição de foro se não houver hipossuficiência da parte (27); entenderam que contratos de natureza empresarial são sempre válidos (25); dizem que a manutenção do foro não prejudica o acesso à justiça (24); e/ou invocaram o princípio “pacta sunt servanda”, de respeito ao pactuado pelas partes (18).

Em março, a 20ª Câmara de Direito Privado do TJSP proferiu decisão nesse sentido. “As Cortes Reservadas em matéria empresarial vêm preservando a livre disposição entre os empresários no que se refere à eleição do foro para litígio”, diz o desembargador relator Ricardo Negrão, em decisão unânime. “Essa disposição está incluída no âmbito das estratégias empresariais, adotadas em comum acordo por sujeitos que não são considerados hipossuficientes tecnicamente, nem mesmo em contratação de franquia” (agravo de instrumento nº 2025649-59.2025.8.26.0000).

A conclusão, afirma Tatiana, é que para contratos já firmados, se ficar comprovado que não há vulnerabilidade de uma das partes, que a natureza do acordo é empresarial e que não há impossibilidade de acesso à Justiça é possível manter a cláusula como está. “Só para novos contratos o melhor é já atender os comandos da reforma legal”, diz.

Para Natan Baril, diretor jurídico da Associação Brasileira de Franchising (ABF), a alteração do artigo 63 do CPC trouxe um filtro importante contra a escolha de foros aleatórios. “Mas carrega o risco de gerar instabilidade contratual”, afirma. “Se cada cláusula de foro puder ser contestada, aumenta a litigiosidade, isso eleva custos e afeta a confiança das partes. O equilíbrio está em respeitar pactos que tenham vínculo com as partes ou com o contrato e coibir apenas abusos evidentes”, acrescenta.

Sobre o levantamento, Baril diz que um Judiciário que preserva as cláusulas de foro quando há pertinência reforça a autonomia privada, dá segurança jurídica e garante previsibilidade às redes de franquia. “O entendimento de que as mudanças valem apenas para ações novas protege contratos antigos e fortalece a estabilidade do setor, o que atrai crédito e incentiva investimentos”, diz.

O franqueado, afirma o diretor jurídico da ABF, não pode ser visto como parte vulnerável de um contrato. “Franquia é uma relação empresarial, não de consumo. Trata-se de contrato de padrão empresarial, e não de contrato de adesão”, conclui.

Fonte: Valor Econômico, 15 de setembro de 2025

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