Tribunal adota salário-mínimo como mínimo existencial, mais que os R$ 600 previsto em lei
Marcela Villar
A 22ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) permitiu a repactuação de dívidas por superendividamento e flexibilizou restrições previstas em lei. Para os desembargadores, o total devido mensalmente por um consumidor a bancos compromete o “mínimo existencial” – renda básica para a sobrevivência humana – e, por isso, determinaram que se garanta ao devedor um salário mínimo (hoje em R$ 1.518), contrariando o previsto no Decreto nº 11.150/2022, que estipula apenas R$ 600.
Segundo especialistas, essa é uma das primeiras decisões judiciais que adota o salário mínimo como mínimo existencial. Além disso, o entendimento majoritário do TJSP rejeita as ações com base na Lei de Superendividamento, que é uma espécie de recuperação judicial para pessoas físicas (Lei nº 14.181/2021).
O caso trata de um agente penitenciário que tinha 95% de sua renda comprometida por empréstimos. Ele ganha salário de R$ 5,4 mil, mas tinha R$ 2 mil descontados na folha para pagamento de consignados. Do seu rendimento líquido de R$ 1,9 mil, ainda havia R$ 1,6 mil destinados a quitar outros empréstimos, de modo que sobrava na conta apenas R$ 230 por mês.
As dívidas eram com seis instituições: a Crefisa, PKL One Participações (detentora do cartão Credcesta, do Banco Master) e os bancos Santander, Alfa (agora Banco Safra), Master, Daycoval e Banco do Brasil. O Daycoval foi o único a recorrer para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), alegando que o TJSP não poderia ter definido como mínimo existencial valor diferente do previsto em decreto e que o agente não comprovou estar superendividado.
O servidor público moveu a ação de repactuação de dívidas no ano de 2023, pedindo a suspensão dos descontos de empréstimos para ter ao menos 30% da renda disponível. Esse percentual é o máximo que a jurisprudência reconhece como impenhorável para a preservação do mínimo existencial. No caso de consignados, a lei estipula um limite de 35%.
O autor do processo solicitou a suspensão das cobranças até a apresentação de um plano de pagamento, além de reparação por danos morais de R$ 10 mil. Foi feita uma audiência de conciliação com os bancos, infrutífera. Os pedidos do agente penitenciário foram negados pelo juiz Lucas Ricardo Guimarães, da 1ª Vara do Foro de Osvaldo Cruz.
Na sentença, o magistrado vedou a renegociação por entender que os contratos não se inserem na previsão legal e que a renda do trabalhador é superior a R$ 600 – ambas situações vedadas pelo Decreto nº 11.150/2022. Além disso, julgou que a proposta de pagamento apresentada pelo devedor não poderia ser superior a cinco anos, pois esse prazo é acima do disposto no Código de Defesa do Consumidor (CDC).
A sentença foi reformada pelo TJSP. O relator, o desembargador Roberto Mac Cracken, privilegiou a preservação do mínimo existencial, conceito incluído no CDC pela Lei nº 14.181/2021. Diz em seu voto que, de fato, o Decreto nº 11.150 impossibilita a renegociação de operações de crédito consignado, mas que o CDC prevê que “todas as dívidas de relação de consumo devem ser consideradas para efeito de averiguação de superendividamento”.
Por isso, “ante o princípio da hierarquia das normas, deve prevalecer a lei federal sob o decreto regulamentatório”. Mac Cracken observa ainda, no voto, que o decreto de 2022 “colocaria o consumidor em uma posição inicial indubitavelmente desfavorável”. Lembra que o consignado incide diretamente sobre verba de natureza alimentar e que a Lei nº 10.820/2003 possibilita a reserva de até 40% da remuneração do tomador do empréstimo.
“Logo, sempre com o devido respeito, inconcebível a desconsideração das operações de crédito consignado que podem afetar até 40% da remuneração do consumidor para aferição do mínimo existencial e para renegociação de dívidas”, afirma o relator, no acórdão (processo nº 1001826-84.2023.8.26.0407).
Mac Cracken ainda diz que a previsão do mínimo existencial de R$ 600 é apenas um parâmetro e que ele deve abranger moradia, alimentação, água, energia e gás. Levou em conta que em São Paulo a cesta básica tem custo médio de R$ 800, portanto, deve ser considerado um salário mínimo.
Ele determinou a criação de um plano de pagamento compulsório respeitando o mínimo existencial de um salário mínimo, com reajuste, que deve ser homologado pelo juiz. Antes disso, uma perícia contábil para analisar os rendimentos e débitos do devedor deve ser feita.
Na ação, os bancos defendem a validade dos consignados. José Umberto Franco, do GMW Advogados Associados, que atua pelo Daycoval no caso, acredita não ser função do Judiciário estabelecer valor para o mínimo existencial, pois cada pessoa tem um padrão de vida diferente. “Entra numa situação que vai conflitar uma decisão judicial com uma determinação legal.”
Para ele, é preciso uma análise mais profunda da questão. “Como vão ficar os consignados para pessoas assalariadas que ganham um salário mínimo, se o entendimento for que ele é inviolável? Será que todos esses consignados vão para o buraco? É muito arriscado para o sistema financeiro como um todo”, diz.
Franco afirma que é preciso investigar a situação financeira não só do tomador do empréstimo, mas da família. Assim, se evitaria possíveis fraudes. “Uma família pode direcionar todas as dívidas para um membro dela. Ele consegue fazer inúmeros contratos de financiamento, deixa de fazer o pagamento e a família vive desfrutando daqueles empréstimos e da ação de superendividamento”, completa. “Não é simplesmente ter um olhar objetivo nos números.”
Já o advogado Diego Cruz, do Guedes & Cruz Advogados, argumenta que a Lei do Superendividamento surgiu para dar voz aos consumidores e evitar abusividades de bancos. Ele atende cerca de 50 pessoas por dia em relação a este tema e tem 500 processos.
Segundo ele, há um desconhecimento dos magistrados sobre o assunto, o que leva a decisões equivocadas, como ocorreu na sentença reformada pelo TJSP. “Muitas vezes o magistrado confunde o que está sendo discutido e dá espaço para leis antigas que talvez não tenham o objeto protegido pela Lei do Superendividamento, que é o mínimo existencial, a capacidade de existência e dignidade da pessoa humana”, explica.
Uma cartilha do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) orientando a aplicação da lei aos magistrados tem fortalecido esse debate, diz o advogado. Mas ainda há melhorias a serem feitas. Cruz critica, por exemplo, o prazo de cinco anos previsto na lei como máximo para quitação dos débitos. “O mais importante não é ficar dentro dos cinco anos, é garantir que a pessoa tenha um salário digno e que o banco não retenha mais de 35%”, completa.
Procurado pelo Valor, o Santander disse que “não comenta casos sub judice”. O BB afirmou que “se manifestará apenas nos autos do processo”. Os outros bancos não deram retorno até o fechamento da edição.
Fonte: Valor Econômico, 8 de janeiro de 2025