Para Órgão Especial, dispositivos da lei são inconstitucionais
Adriana Aguiar
Fornecedores da cidade de São Paulo estão desobrigados de seguir algumas determinações do Código Municipal de Defesa do Consumidor (Lei nº 17.109, de 2019). O Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado (TJSP) derrubou dispositivos da norma, por considerá-los inconstitucionais. Para os desembargadores, não seria de competência do município legislar sobre o tema.
O julgamento foi realizado na quarta-feira da semana passada, no Dia do Consumidor (15). Em dezembro, o Tribunal de Justiça do Rio (TJRJ) já havia derrubado artigos semelhantes do código editado pela capital (Lei nº 7.023, de 2021).
Nos dois casos, foram cancelados artigos que tratavam de práticas ou cláusulas consideradas abusivas nas relações de consumo. Entre elas, a exigência, pelo fornecedor, de dois ou mais laudos de assistência técnica para a troca de produto com defeito e o estabelecimento de limite quantitativo na venda de um produto.
Os tribunais também anularam dispositivos que tratavam da obrigatoriedade do fornecedor de disponibilizar um canal direto com o consumidor e o que exigia que toda oferta publicitária informasse prazo de entrega. Além da previsão que considerava como cláusula abusiva o envio do nome do consumidor a banco de dados e cadastros de consumidores sem notificação prévia por envio de carta simples e por meio eletrônico.
No caso de São Paulo, os desembargadores cancelaram ainda previsão de cobrança de taxa dos fornecedores pelo Procon municipal. O valor era de R$ 300 por reclamação fundamentada atendida e de R$ 750 por reclamação fundamentada não atendida.
Os desembargadores do TJ-SP analisaram a questão por meio de três ações, ajuizadas pela Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (Fecomercio-SP), Associação Nacional das Operadoras Celulares (Acel) e Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee).
Por maioria de votos (16 a 9), o Órgão Especial nem chegou a analisar o mérito dessas previsões questionadas. Os julgadores entenderam que os artigos eram inconstitucionais no aspecto formal. Isso porque, segundo eles, não seria de competência do município legislar sobre direito do consumidor, mas sim da União, segundo a Constituição Federal.
O município, de acordo com os desembargadores, tem apenas uma competência suplementar, quando há interesse local particular (processos nº 2188592-33.2019.8.26.0000, nº 2152348-37.2021.8.26.0000 e nº 2260724-88.2019.8.26.0000).
Segundo os advogados que assessoram a Abinee nos processos tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo, Roberta Feiten e Ronaldo Kochem, do Souto Correa Advogados, os julgamentos trazem uma ótima sinalização ao mercado de que valem as regras do Código de Defesa do Consumidor (CDC) e que o município só poderia legislar sobre o tema caso haja uma peculiaridade local.
Essas previsões, afirmam, deixavam o fornecedor em uma situação prática difícil, já que muitos atuam no país inteiro, com mais de cinco mil municípios, e não conseguiriam seguir regras diferentes, a depender da localização. “A competência para regulamentar normas gerais, como práticas e cláusulas abusivas na relação de consumo, é da União”, diz Roberta.
Esses julgamentos, acrescentam os advogados, não devem trazer prejuízo aos consumidores. “Hoje, com o comércio eletrônico, não se fala mais em limites territoriais e até mesmo pequenos fornecedores podem vender para o país todo. Imagine se cada município tivesse sua legislação própria. Essa multiplicidade de normas pode inviabilizar e onerar o fornecimento e quem vai sofrer com isso é o próprio consumidor”, afirma Roberta.
A advogada Ana Paula Locoselli, assessora jurídica da FecomercioSP, ressalta que a legislação do Rio era semelhante à de São Paulo, que apenas trazia a mais esse artigo das taxas pagas ao Procon. Para ela, a decisão do TJ-SP foi acertada. “O CDC já é suficiente. Já faz parte da nossa cultura. Ele já está consolidado e não é preciso criar mais nada”, diz.
Em São Paulo, parte de seis artigos da Lei nº 17.109/2019 foram considerados inconstitucionais. No artigo 3º, os incisos I, VI, IX e XV, que tratam de práticas abusivas. No artigo 4º, os incisos XVII e XVIII, que tratam de cláusulas abusivas. E por fim, os artigos 14, 15, 16 e 17, que tratam das taxas que teriam que ser pagas ao Procon municipal. A decisão foi publicada na quarta-feira.
De acordo com o advogado José Felipe Perroni, sócio do escritório SiqueiraCastro, o TJSP acertadamente declarou a inconstitucionalidade da maioria dos artigos do Código Municipal de São Paulo, “uma vez que o legislador inseriu diversas disposições repetidas, já constantes no CDC vigente no âmbito federal, sem a inclusão de matérias de interesse local”.
No Rio de Janeiro, a questão foi também analisada pelo Órgão Especial. A ação foi movida pela Abinee, logo após a entrada em vigor do Código Municipal de Defesa do Consumidor (processo nº 0003013-36.2022.8.19.0000).
Os desembargadores consideram inconstitucionais os incisos I, VI, VII, IX, X e XV do artigo 3º e os incisos XV e XVI do artigo 4º. Entenderam que essas previsões extrapolam a competência do município para legislar e vão além do que estabelece o CDC. A Procuradoria Geral do Município do Rio recorreu com embargos de declaração, ainda não julgados.
Procurada pelo Valor, a Prefeitura de São Paulo, por meio da Procuradoria Geral do Município, informou que “ainda não foi intimada da decisão citada e permanece à disposição da Justiça”. A Acel não deu retorno até o fechamento da edição.
Fonte: Valor Econômico, 24 de março de 2023