1ª Turma entendeu que decreto que acabou em 2019 com benefício fiscal só deveria valer no ano seguinte
Bárbara Pombo
Contribuintes paulistas conseguiram um importante precedente no Supremo Tribunal Federal (STF) para limitar os efeitos de um decreto do Estado de São Paulo que acabou com benefício fiscal do ICMS. A 1ª Turma, formada por cinco ministros, decidiu que a norma, editada no fim de abril de 2019, só poderia ter começado a valer em janeiro do ano seguinte.
A decisão beneficia uma empresa do ramo de medicina veterinária. Agora, poderá utilizar aproximadamente R$ 2 milhões em créditos do imposto que havia sido obrigada a estornar por imposição da regra.
O alvo da disputa é o Decreto nº 64.213, editado em 30 de abril de 2019. Pela norma, os contribuintes perderam a possibilidade de aproveitar créditos de ICMS decorrentes de compras de insumos agropecuários isentos do imposto. A restrição passou a valer a partir do dia seguinte à publicação – 1º de maio.
Muitas empresas questionaram no Judiciário a revogação do benefício fiscal, que perdurou por 19 anos. De acordo com a Procuradoria Geral do Estado (PGE) de São Paulo, são pelo menos 108 ações em andamento.
Duas teses são discutidas, segundo o órgão. Os contribuintes contestam a legalidade da revogação, que foi feita por decreto e não por lei. E alegam que a medida violaria os princípios da anterioridade anual (validade a partir do exercício financeiro seguinte ao da publicação da norma) e nonagesimal (prazo de 90 dias). Previstas na Constituição, as regras devem ser aplicadas juntas e pretendem evitar surpresas para o contribuinte com criação ou aumento de tributos.
A decisão da 1ª Turma do Supremo analisou a validade da extinção imediata do benefício fiscal. Os ministros analisaram se a revogação do incentivo constituiu majoração indireta de tributo, o que obrigaria o Estado a observar as anterioridades anual e nonagesimal.
“De um dia para o outro, o Estado voltou a exigir o estorno dos créditos. A consequência disso é que o crédito – que poderia ser utilizado antes para comprar equipamentos, quitar ICMS próprio e pagar fornecedores – virou custo da empresa”, explica a advogada tributarista Juliana Camargo Amaro, sócia do escritório Finocchio & Ustra Advogados, que defendeu a empresa no Supremo (ARE 1343737).
De acordo com levantamento da banca, foi o primeiro julgamento de mérito na 1ª Turma sobre essa questão. Em dois casos anteriores (ARE 1324386 e ARE 1318720), os recursos extraordinários propostos pelo Estado paulista não foram admitidos. Na prática, isso fez com que prevalecessem decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), favoráveis aos contribuintes. A 2ª Turma da Corte ainda não analisou o tema, segundo a pesquisa.
O placar foi apertado: três votos a dois. Prevaleceu o voto do ministro Roberto Barroso. Ele discordou do relator do caso, ministro Alexandre de Moraes, para quem a revogação de benefício fiscal não seria majoração de tributo. Dessa forma, não haveria necessidade de o Estado jogar os efeitos do decreto para o ano seguinte ao da publicação.
Segundo Moraes, esse entendimento estaria em linha com precedente do ano de 2008 na ADI 4016. Naquela ocasião, o Supremo definiu que a redução ou extinção de desconto para pagamento de imposto sob determinadas condições previstas em lei, como o pagamento antecipado em parcela única, não pode ser equiparada a aumento de tributo. A ministra Cármen Lúcia concordou com o relator.
Para Barroso, porém, esse precedente estaria superado. De acordo com o voto do ministro, a jurisprudência do Supremo tem se consolidado para reconhecer a necessidade de respeito à anterioridade anual e à noventena diante de aumento indireto de tributo, como a revogação de benefício fiscal.
“A anterioridade tributária visa a assegurar a previsibilidade da carga tributária, protegendo a segurança jurídica, a não surpresa e a confiança legítima. Por isso, também deve ser aplicada à revogação ou alteração de benefício fiscal, conforme já reconhecido por esta Corte”, afirma Barroso, que redigiu o acórdão.
A posição foi seguida pela ministra Rosa Weber e pelo ministro Dias Toffoli, que afirmou ter aderido à corrente majoritária no STF depois de decidir de forma desfavorável à tese dos contribuintes.
De acordo com o advogado Alessandro Borges, do escritório Benício Advogados Associados, nas ocasiões em que analisou a disputa, o TJSP deu ganho de causa ao contribuinte. “O tribunal tem aplicado a posição mais recente do STF de que o Estado precisa obedecer a anterioridade porque a revogação de benefício fiscal constitui majoração indireta de tributo”, diz.
A Procuradoria Geral do Estado, em nota ao Valor, afirma que não recorrerá da decisão. A discussão sobre a legalidade do decreto, por outro lado, continua viva. A PGE diz que o TJSP tem entendido pela possibilidade de utilização de decreto para regular a matéria, em linha com o decidido pelo STF na arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) nº 198.
“Apesar de improváveis, eventuais decisões afastando a aplicação do decreto por violação ao princípio da legalidade seguirão sendo objeto de recurso”, afirma a procuradoria.
Fonte: Valor Econômico, 05 de maio de 2022