STJ define responsabilidade por compra on-line cancelada

Para ministros, lojista não pode ser o único responsável pelo chamado chargeback

Luiza Calegari

A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que o lojista não pode ser o único responsável pelo cancelamento de compras on-line pelo consumidor – o chamado chargeback. No caso concreto, o valor pago a uma joalheria foi estornado pela operadora do cartão de crédito após alegação de fraude na cobrança.

A decisão do colegiado foi proferida por maioria de votos. Para especialistas, contudo, embora ela proteja a parte mais vulnerável – o lojista -, trata-se de “perigosa” intervenção do Judiciário em um acordo privado.

No caso concreto, a joalheria J.C. Presentes e Serviços Digitais, de São José do Rio Preto (SP), tinha firmado contrato com a empresa intermediadora de meios de pagamento Stone. O documento prevê que a lojista seria inteiramente responsável em caso de eventuais erros nos dados, contestação ou cancelamento das transações.

A advogada Ana Augusta Jensen, representante da joalheria no processo, pediu ao Judiciário o reconhecimento de nulidade dessa cláusula, o ressarcimento do valor da compra e a indenização por danos morais.

A Stone, por sua vez, disse que a loja foi descuidada ao aceitar fatiar os valores de uma única venda em diferentes compras com cartão de crédito, o que seria uma conduta comumente adotada em fraudes. E que teria sido negligente por ter aceitado vender uma grande quantidade de produtos, no valor de quase R$ 30 mil, a ser entregue a pessoas que não eram os titulares dos cartões usados.

Na primeira instância, a 2ª Vara Cível de São José do Rio Preto (SP) entendeu que a joalheria sofreu um golpe. Isso porque os consumidores teriam recebido as encomendas, conforme o rastreamento dos Correios.

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) também deu razão à loja. Afirmou que ela tomou todos os cuidados necessários, pedindo comprovante de residência e dados dos supostos compradores. Caberia, então, à intermediadora de pagamentos comprovar a fraude, o que ela não fez, segundo a 17ª Câmara de Direito Privado da Corte.

A Stone, representada pelo Castro Neves Advogados, recorreu ao STJ, mas teve o recurso negado. A maioria dos ministros da 3ª Turma acompanhou a divergência, aberta por Humberto Martins. A relatora, ministra Nancy Andrighi, ficou vencida.

Segundo Humberto Martins, deixar que a própria intermediadora de pagamentos decida sobre a contestação da compra desrespeita as garantias de ampla defesa e do contraditório. Além disso, acrescentou, determinar, unilateralmente, que ela decida não repassar o pagamento à lojista é o mesmo que equipará-la a um juiz arbitral (REsp 2151735).

O ministro Ricardo Villas Bôas Cueva acompanhou a divergência, acrescentando que seria preocupante “imputar ao lojista em toda e qualquer circunstância a responsabilidade exclusiva por contestações ou cancelamentos de transações”. Para ele, isso equivaleria a repassar ao lojista todo o risco da atividade.

O entendimento também foi acompanhado por Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro. Ficou vencida a relatora, ministra Nancy Andrighi, para quem intervir no contrato firmado entre o comerciante e a intermediadora de pagamentos “é dever que escapa do Poder Judiciário quando não estão presentes elementos que exijam a sua atenção, como seria se estivesse em debate relação consumerista”.

“O lojista assume livremente a responsabilidade de arcar com os custos do chargeback quando firma contrato de credenciamento com credenciadora que adota essa política”, afirmou Nancy.

Os ministros chegaram a cogitar não analisar o mérito do recurso para não interferir nos contratos privados, uma preocupação levantada por Nancy Andrighi. No entanto, após debater a questão, concordaram em julgar o recurso da Stone.

Walter Ferreira, sócio do escritório Pessoa & Pessoa Advogados, destaca que o entendimento ajuda a preservar a sobrevivência de pequenas empresas. “Dar a todo e qualquer lojista ou comerciante a imediata e inequívoca responsabilidade em caso de chargeback pode ser, em muitos casos, asfixiar ou inviabilizar o negócio”.

Porém, especialistas destacam que a decisão do STJ abre um precedente perigoso de intervenção no mercado. Para a advogada Camila Leite, sócia do Ernesto Borges Advogados, o debate da questão demonstra que a decisão “só corrobora que a interpretação quanto ao arranjo de pagamentos não é uníssona e, portanto, requer atenção e cautela, dados os impactos que o tema produz na economia como um todo”.

O entendimento pode trazer insegurança, por intervir em contratos teoricamente livremente pactuados pelas partes, afirma Bruno Machado, especialista em Direito Civil e sócio do Azevedo Machado Advogados. “Quando há incerteza sobre a estabilidade e cumprimento estrito de contratos, investidores e agentes econômicos podem enxergar o ambiente jurídico como menos previsível, o que pode impactar o fluxo de investimentos e aumentar custos operacionais no país”, diz.

Para Patrícia Helena Marta Martins, sócia na área de Direito do Consumidor de TozziniFreire Advogados, afastar a responsabilidade dos lojistas estabelecida em contrato significa imputar essa responsabilidade aos demais agentes da cadeia contratual que envolve as transações com cartão de crédito. “Outra preocupação é a intervenção do Judiciário”, afirma.

Procurada pelo Valor, a Stone informou que vai recorrer da decisão. Por meio de nota, “reitera que acompanha atentamente as discussões judiciais e administrativas sobre o tema e seus impactos econômicos para todos os participantes dos arranjos de pagamento”. A advogada da joalheria, Ana Augusta Casseb Ramos Jensen, disse que ainda não teve acesso aos autos do processo e, por isso, não se manifestaria.

Fonte: Valor Econômico, 17 de outubro de 2024

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