Para os ministros, a decisão que considerou constitucional a previsão de penhora só valeria para contratos residenciais
Adriana Aguiar
O Supremo Tribunal Federal (STF) passou a considerar impenhorável imóvel de fiador que garante contrato de aluguel comercial. Há decisões nas duas turmas, que divergem do entendimento tomado em julgamento de repercussão geral em 2010. Para os ministros, a decisão que considerou constitucional a previsão de penhora só valeria para contratos residenciais.
O entendimento, segundo especialistas, dificulta a aceitação de fiança no mercado imobiliário. Afeta, principalmente, os pequenos comércios e empresas que, pelo valor do aluguel e das condições financeiras dos locatários, precisam de fiador, afirma Adriano Sartori, vice-presidente de Gestão Patrimonial e Locação do Secovi-SP. “O comércio de rua, por exemplo, que já está sendo tão prejudicado com a pandemia, pode ter dificuldade de arrumar uma outra garantia”, diz.
Não há uma pesquisa consolidada sobre a importância do fiador para a área comercial. Só para a área residencial. A Pesquisa de Locação do Secovi-SP, mostra, por exemplo, que em 44,5% dos contratos firmados em novembro havia fiança como garantia. A discussão começou depois de o Plenário do STF (RE 612360) considerar legítima a penhora de bem de família de fiador, de forma geral. A medida está prevista no artigo 3º, inciso VII, da Lei nº 8.009, de 1990, que trata do bem de família. O tema também está pacificado no Superior Tribunal de Justiça (STJ), por meio da Súmula nº 549.
Após o julgamento, os fiadores de locações comerciais passaram a questionar a aplicação do entendimento com a argumentação de que o caso tratado era de imóvel residencial, o que levou os ministros a se debruçarem novamente sobre o tema.
Eles passaram a entender que, no caso de contrato de imóvel comercial, deveria prevalecer o direito à moradia do fiador, uma vez que não está se falando de direito de moradia do locatário, que aluga com propósito negocial.
O advogado Artur Ratc, sócio do escritório Ratc & Gueogjian Advogados, obteve recentemente uma decisão a favor de seu cliente. Para ele, nesses casos não se pode aplicar o que foi decidido em repercussão geral porque são situações diferentes. “O contrato comercial tem suas peculiaridades. Quando uma pessoa jurídica é executada pelo não pagamento de aluguel, quem deveria sofrer as consequências seria seu real devedor [dono ou sócio da empresa] e não o fiador, que sofre uma medida desproporcional com a penhora de seu único bem”, diz.
Na decisão, a ministra Cármen Lúcia, da 2ª Turma (RE 1296835), destaca que, embora o Supremo tenha reconhecido ser constitucional a penhorabilidade de bem de família de fiador em contrato de locação (Tema 295 da repercussão geral), o entendimento não se aplica ao caso de imóvel comercial. Ela cita em seu voto decisões tanto da 1ª como da 2ª Turma, além de monocráticas (concedidas por um só ministro).
Uma das decisões, da 2ª Turma, é de relatoria do ministro Edson Fachin (RE 1277481). Ele afirma que “verifica-se que quando se trata de contrato de locação residencial é possível contrapor o direito à moradia de fiadores ao igualmente relevante direito à moradia dos locatários, o que não se verifica na hipótese de fiança em contrato de locação de imóvel comercial”.
A 1ª Turma também tem entendimento semelhante. Em caso julgado em fevereiro de 2019, a redatora para o acórdão, ministra Rosa Weber diz que não pode haver a penhora do bem de família do fiador, “destinado à sua moradia, cujo sacrifício não pode ser exigido a pretexto de satisfazer o crédito de locador de imóvel comercial ou de estimular a livre iniciativa (RE 605709).
Advogados do setor, contudo, discordam do novo entendimento no Supremo. Luís Rodrigo Almeida, sócio do Dib Almeida Laguna Manssur, ressalta que os julgados não são unânimes e o tema não foi analisado sobre esse prisma em repercussão geral. Para ele, seria mais razoável prevalecer o entendimento dos ministros que hoje são voto vencido, como Luís Roberto Barroso e Dias Toffoli.
Segundo os ministros, o fiador aceitou garantir a dívida por sua livre e espontânea vontade, e se prestou a pagar a dívida solidariamente, caso o locatário não a quite. “Ele assumiu esse risco, sabendo que a lei, desde a década de 90, é clara de que pode ter seu bem de família penhorado”, afirma Almeida.
Rodrigo Karpat, do Karpat Advogados, também concorda. “Esses julgados vão na contramão do que o Supremo já tinha definido de forma geral e também de como atua o mercado”, diz.
Jaques Bushatsky, sócio da Advocacia Bushatsky, lembra que a lei que trata da penhora de bem de família não faz qualquer distinção entre contrato comercial e residencial. Esse novo entendimento também prejudica, na sua opinião, a segurança jurídica, uma vez que os contratos foram firmados levando em consideração o que diz a lei.
Para o mercado imobiliário, o entendimento das turmas do STF também pode ser prejudicial. As novas decisões, segundo o advogado Luís Rodrigo Almeida, podem desestimular o uso da garantia em aluguel comercial mais usual do mercado e a única gratuita. E poderá encarecer, acrescenta, outras formas de garantia, como seguro ou caução, caso seja julgado dessa forma em repercussão geral no STF.
Fonte: Jornal Valor Econômico, 4 de Fevereiro de 2021