Mulheres não gestantes em união homoafetiva também têm direito ao benefício
Marcela Villar
Mães não gestantes que estejam em união homoafetiva têm direito à licença-maternidade, conforme decisão unânime do do Supremo Tribunal Federal (STF). Os ministros analisaram o caso de uma servidora que não teve o benefício concedido pela Prefeitura de São Bernardo do Campo (SP) após a companheira engravidar por inseminação artificial. Como o processo está em repercussão geral, a decisão vale para todos os casos semelhantes no Judiciário do país.
Após a negativa da administração pública, a servidora municipal, que doou os óvulos para a parceira gestar a criança, foi ao Judiciário para ter o direito à licença reconhecido. A Turma Recursal do Juizado Especial da Fazenda Pública de São Bernardo do Campo concedeu o direito a ela de ficar afastada do trabalho por 180 dias. A companheira dela, trabalhadora autônoma, não teve direito ao benefício.
Como o município recorreu, o caso chegou ao STF, no ano de 2019. O entendimento da prefeitura foi de que não haveria previsão legal sobre o tema e que ela apenas doou os óvulos e não gestou a criança. Para o município, o direito seria apenas da mãe gestante. Alega ainda que interpretação extensiva atribuída ao benefício contraria o princípio da legalidade administrativa.
O relator do caso, o ministro Luiz Fux, negou o recurso e manteve os entendimentos anteriores a favor da funcionária. Fundamentou a decisão nos princípios constitucionais da isonomia — uma vez que mães adotantes têm direito ao afastamento — e no da dignidade da pessoa humana. Segundo Fux, o fato de não haver uma previsão legal que assegure o direito à licença para a mãe não gestante não é motivo para não dar o direito.
“O custo social do não reconhecimento do benefício uma vez em jogo os direitos os quais a Constituição confere especial atenção é consideravelmente maior do que a ausência de previsão da situação jurídica específica no texto legal”, afirmou o ministro, na sessão de julgamento. “O conjunto legislativo sub judice ainda assume como paradigma um modelo tradicional de família centrado na heteroafetividade e no vínculo indissolúvel do casamento”, completou.
Com base no seu voto, foi fixada a seguinte tese: “A mãe servidora ou trabalhadora não gestante em união homoafetiva tem direito ao gozo de licença maternidade. Caso a companheira tenha utilizado o benefício, fará jus à licença pelo período equivalente ao da licença paternidade”. Na prática, Fux deu o mesmo direito dos casais heterossexuais ao casal homossexual composto por mulheres (RE 1211446).
Acompanharam o relator, mas divergiram da tese, os ministros Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia e Dias Toffoli. Eles entenderam que equiparar uma das licenças à licença paternidade seria “replicar o modelo tradicional de casamento” formado por homem e mulher. Segundo Moraes, que abriu a divergência, não caberia ao Estado definir quem do casal é o pai ou a mãe, até porque a configuração da família é diferente. Por isso, defendeu que ambas as mães deveriam ter direito ao período integral da licença-maternidade, de 120 dias.
Para a advogada trabalhista Ana Gabriela Burlamaqui, sócia do escritório A. C Burlamaqui Consultores, a decisão do Supremo não foi surpresa. Foi coerente com o que foi decidido pela Corte em outros processos, em uma tendência de dar uma paridade de benefícios nas relações de família “não típicas”. “O Supremo já vem se posicionando, há algum tempo, sobre a ótica das novas unidades familiares e da proteção da criança. E as licenças têm como fundamento o cuidado com a criança naquele momento, independente da tipicidade da família”, afirma.
Dentre as decisões, está a do ano de 2011, que reconheceu a união estável de casal homoafetivo (ADI 4277 e ADPF 132) e o entendimento de que mãe adotante deve ter o mesmo direito à licença-maternidade da mãe biológica, em 2016, também em repercussão geral (RE 778889).
Segundo Gabriela, que advoga para o setor empresarial, a decisão não deve — nem pode — provocar uma tendência das empresas em contratarem menos mulheres. “Qualquer mulher pode estar em uma relação homoafetiva e pode vir a ser gestante. Não se pode deixar de contratar por esses motivos, porque essa discriminação é crime”, conclui.
A advogada Daniela Barreiro Barbosa, sócia do Innocenti Advogados, entende que a linha defendida por Moraes, Cármen Lúcia e Toffoli seria mais adequada e igualitária. “O Estado entra numa seara que impacta os direitos basilares do conceito de família, porque as duas mães se sentem mães e deveriam ter direito à licença-maternidade”, afirma. Ela acredita que pesou entre a maioria dos ministros a questão dos custos que a dupla licença traria para a Previdência Social. “Mas as duas são contribuintes e as duas deveriam ter esse direito”, diz.
Hoje, na legislação federal, a licença para mães é de 120 dias e pode ser acrescido de mais de 60 dias para aderentes do programa Empresa Cidadã, instituído pela Lei nº 11.770/2008 e regulamentado pelo Decreto nº 7.052/2009. Já a licença paternidade é de 5 dias e pode aumentar para 20, se a companhia estiver no programa. O STF, no fim do ano passado, reconheceu omissão legislativa sobre a regulamentação do direito à licença-paternidade e deu prazo de 18 meses para o Congresso Nacional editar lei nesse sentido. Após o prazo, caso a omissão persista, caberá ao STF definir (ADO 20).
Na sustentação oral do caso, feita na semana passada, falou o advogado Paulo Francisco Soares Freire, representante da Confederação Nacional do Trabalhadores em Saúde (CNTSS), que é parte interessada na ação (amicus curiae). Ele afirmou que a licença-maternidade tem como objetivo o bem-estar da família e negativa do benefício à mãe não gestante e doadora do óvulo representaria violação ao princípio da isonomia.
Da decisão do Supremo de ontem, cabem embargos de declaração, que não têm condão para mudar o mérito da decisão, apesar esclarecer obscuridades, como se o que foi decidido vale para casos pretéritos ou apenas daqui para frente.
Fonte: Jornal Valor Econômico, 13 de março de 2024