Shopping Centers na pandemia: aluguéis, energia elétrica e uma questão de igualdade

Cobrança mínima de aluguel e de energia confrontam interesses de lojistas e empreendedores

Francisco dos Santos Dias Bloch*

Desde o início da pandemia do coronavírus no Brasil, em março de 2020, iniciou-se uma imensa discussão entre empreendedores de shopping centers e lojistas no que diz respeito ao aluguel, considerando o fechamento dos centros comerciais e sua posterior reabertura, com restrições, em todo o território nacional.

Os empreendedores de shopping centers em geral concederam descontos na “primeira onda” da pandemia, mas atualmente, neste primeiro semestre de 2021, entendem que cabe aos lojistas arcarem com os valores de aluguel previstos em contrato. Os lojistas, por sua vez, insistem que os fechamentos e restrições às atividades ainda permanecem (e, em alguns casos, são mais rígidos do que no ano de 2020), o que justifica a isenção ou redução dos aluguéis.

A discussão rapidamente chegou ao Poder Judiciário. Os lojistas alegam que o “aluguel mínimo” previsto nos contratos de locação em shopping centers deve ser afastado durante a pandemia, devendo ser pago apenas o “aluguel percentual” que incide sobre o faturamento das lojas, com base na Teoria da Imprevisão estabelecida no artigo 317 do Código Civil.[i]

E os shopping centers alegam que os salões comerciais estão à disposição dos lojistas, independentemente das restrições ao funcionamento dos centros comerciais, de maneira que não haveria motivo para revisar os contratos de locação, mesmo que as vendas tenham caído ou cessado completamente.

Ocorre que, conforme demonstraremos, os próprios shopping centers vem utilizando o artigo 317 do Código Civil para revisar seus contratos de fornecimento de energia elétrica, e apresentam pedidos muito semelhantes aos que recebem de seus lojistas.

De fato, os shopping centers normalmente contratam o fornecimento de energia com base em uma “quantidade mínima” de potência ativa, que deverá ser paga independentemente do consumo de energia centro comercial. No jargão, esta disponibilidade é denominada MUSD (Montante de Uso do Sistema de Distribuição, em Kw). Os shopping centers devem pagar este valor não importa a quantidade de energia efetivamente consumida, e pagam, claro, a quantidade efetivamente consumida, se este último valor for maior do que o mínimo.

Ocorre que os centros comerciais têm utilizado a Teoria da Imprevisão para afastar a cobrança da “quantidade mínima” durante o período de restrições decorrentes da pandemia, com o objetivo de pagar somente a energia consumida.

A título de exemplo, vale apontar que os shopping centers Anália Franco e Parkshopping São Caetano, localizados na Cidade de São Paulo, moveram processo judicial visando afastar esta cobrança mínima enquanto durarem as restrições ao funcionamento do comércio. O processo de n.º 1041688-18.2020.8.26.0100, iniciado em maio de 2020, baseou-se na extrema onerosidade da cobrança mínima, na queda de faturamento dos shopping centers, e na não utilização das quantidades de energia contratadas, em razão da impossibilidade legal de abertura dos centros comerciais.[ii]

E esta pretensão dos shopping centers tem sido acolhida. No processo judicial acima mencionado o Shopping Anália Franco e o ParkShopping São Caetano conseguiram, por sentença, o afastamento da obrigação de pagamento mínimo, que independe do consumo de energia elétrica.[iii] A decisão foi confirmada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo em julgamento de 24 de março de 2021, sendo que este Tribunal tem aceitado estes pedidos, movido por operadoras de shopping centers, com regularidade.[iv]

A questão é que os processos movidos pelos lojistas em face dos centros comerciais são muito semelhantes às demandas movidas pelos shopping centers contra as empresas de energia.

Vejamos:

Os shopping centers não pretendem pagar o valor mínimo de energia elétrica, e querem apenas arcar com o valor da energia efetivamente utilizada durante o período de restrições aos centros comerciais. E isso porque não conseguem utilizar as instalações elétricas para o fim pretendido (operação de um shopping center) e seus ganhos caíram tremendamente em razão da pandemia, o que implica em onerosidade excessiva da cobrança mínima.

Já os lojistas não pretendem pagar o aluguel mínimo mensal, e querem apenas arcar com o aluguel percentual, que incide sobre as vendas efetivamente realizadas nas lojas, durante o período de restrições aos centros comerciais. E isso porque não conseguem utilizar os salões comerciais alugados para os fins pretendidos (operação de lojas) e seus ganhos caíram tremendamente em razão da pandemia, o que implica em onerosidade excessiva da cobrança mínima.

Neste sentido, parece razoável e correto que os centros comerciais cobrem de seus lojistas apenas o aluguel percentual, incidente sobre as vendas efetivamente realizadas nas lojas, durante o período de fechamento e restrições aos shopping centers, dispensando o aluguel mínimo mensal, que não guarda relação com as vendas. Assim como é razoável que os shopping centers paguem às empresas de energia elétrica apenas o valor da energia elétrica efetivamente consumida, dispensando o pagamento mínimo, que não guarda relação com o consumo.

Em ambos os casos, lojistas e shopping centers não conseguem utilizar o bem contratado (salão comercial alugado e energia elétrica, respectivamente) para o fim pretendido, em razão de ordem governamental, sendo justo que ambos paguem somente os valores referentes à efetiva utilização daqueles bens.

Neste sentido, cabe às operadoras de shopping centers, e eventualmente ao Poder Judiciário, reconhecer a semelhança entre as duas situações e aplicar a Teoria da Imprevisão de maneira coerente, tanto em benefício dos shopping centers, quando discutem cobranças mínimas de energia elétrica, que independem do consumo do centro comercial, quanto em benefício dos lojistas, quando discutem cobranças mínimas de aluguel, que independem das vendas realizadas nas lojas.

Em ambos os casos, entendemos que deve ser afastada a cobrança mínima enquanto não for possível o pleno funcionamento dos shopping centers. A nosso ver esta é a única interpretação possível das normas do Código Civil para estas situações, à luz do princípio constitucional da igualdade.

[i] Código Civil: “Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação”

[ii] Processo n.º 1041688-18.2020.8.26.0100, fls. 10-11: “Não obstante, a atual situação de pandemia torna extremamente excessivo e oneroso os contratos celebrados entre as partes no tocante à obrigação de arcarem com uma prestação mínima para ter uma reserva de potência de energia mensal em Kw (“Demanda”), que estão por determinação legal impedidos de utilizar. (…) Uma singela verificação a olhos desarmados dos níveis de potência de energia diários utilizados após o fechamento do Shopping é suficiente para demonstrar a excessividade extrema do montante contratado mínimo”.

[iii] Processo n.º 1041688-18.2020.8.26.0100, fls. 10-11: “Posto isso, julgo parcialmente procedente o pedido inicial para, extinguindo o processo com resolução do mérito com fundamento no art. 487, inciso I, do Código de Processo Civil, confirmar a tutela de urgência de fls. 204/206 e determinar que a partir do ajuizamento da demanda até a reabertura autorizada dos shoppings centers a cobrança da energia elétrica seja efetuada com base no efetivo consumo registrado”

[iv] Vejam-se os processos n.º 2140907-93.2020.8.26.0000 e 1000097.2020.8.26.0548, entre outros.

*Francisco dos Santos Dias Bloch é mestre e pós-graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É advogado formado pela PUC/SP e atua em São Paulo, no escritório Cerveira, Bloch, Goettems, Hansen & Longo Advogados Associados (www.cerveiraadvogados.com.br), nas áreas de Direito Contencioso Cível e Direito Imobiliário.

Artigo publicado: CBN Recife, 27 de abril de 2021

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