Gilmara Santos
Ao atingir em cheio a economia mundial, a pandemia da covid-19 fez disparar o desemprego e o número de trabalhadores que recorreram à Justiça para buscar o que consideram ser os seus direitos. Levantamento do escritório LG&P mostra que a quantidade de novos processos trabalhistas no país subiu de 620.742 no primeiro semestre de 2019 para 687.467 em igual período de 2020 e saltou para 891.182 ações de janeiro a junho deste ano.
O reflexo da pandemia na Justiça trabalhista ainda poderá ser maior. Isso porque há os trabalhadores com contratos ativos e o prazo para recorrer à Justiça é de até dois anos após a saída da empresa. “Houve um aumento da litigiosidade devido à pandemia, mas boa parte das reclamações se inicia após a demissão”, diz André Oliveira Morais, do LG&P.
O escritório Jund Advogados Associados, por exemplo, contabilizou o triplo de processos trabalhistas durante o período mais crítico da pandemia. “Tínhamos em torno de 15 ações mensais. Esse número foi para 45 a 50 processos entre meados de 2020 até meados deste ano”, diz o advogado Gabriel Britto. Somente agora, com a reativação do mercado, ele percebe uma redução no número de processos, voltando para cerca de 20 ações mensais.
Segundo o levantamento do LG&P, em relação aos processos trabalhistas em andamento no país, no fim do primeiro semestre deste ano, as horas extras apareciam no primeiro lugar do ranking de pedidos mais recorrentes. O tema consta em mais de 2 milhões de processos, que totalizam R$ 225 bilhões.
O fato gerador desse tipo de pedido, na maioria das vezes, diz respeito à forma como o controle de ponto é realizado. Morais cita cartões com marcação britânica – em que o trabalhador tem em todos os dias os mesmos horários de entrada, intervalo e saída, sem nenhuma variação -, que não retratam a realidade da jornada; pessoas que realizam trabalho externo e não marcam ponto; trabalhadores que não marcam ponto por terem função de confiança; e acordos coletivos de compensação de jornada, banco de horas ou de turnos de revezamento que têm a validade questionada.
Quando o empregador faz o controle de ponto de maneira correta, o que pode ter ficado mais difícil na pandemia, as chances de êxito em caso de disputa judicial aumentam muito, segundo Morais.
Neste sentido, a 2ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 2ª Região (SP) indeferiu um pedido de horas extras por considerar que não houve registro britânico das horas trabalhadas e que os valores pelo trabalho extraordinário teriam sido pagos. Em relação ao intervalo intrajornada, as alegações da testemunha se mostraram insuficientes para invalidar a prova documental.
“Dessa maneira, impõe-se a manutenção do r. Julgado que indeferiu as extraordinárias pleiteadas, bem como a indenização pela fruição irregular da pausa alimentar”, entendeu a desembargadora Marta Casadei Momezzo (Recurso Ordinário 1000452-21.2021.5.02.0084).
A segunda posição no ranking é ocupada pelo adicional de insalubridade. O assunto está em mais de 750 mil processos do período analisado, que somam em torno de R$ 62 bilhões em discussão. “O fato gerador desse tipo de pedido costuma ser a falta ou irregularidade da entrega de EPI [equipamento de proteção individual], ou na manutenção dos laudos técnicos e programas determinados pelas normas regulamentadoras [documentos que identificam, quantificam e minimizam os agentes nocivos aos quais o empregado está exposto]”, diz Morais.
Com a covid-19, todo item capaz de proteger o empregado do contágio no ambiente de trabalho, constante dos protocolos de segurança, higiene, limpeza e desinfecção recomendados, pode ser considerado EPI, alerta o advogado Gabriel Britto.
Os pedidos de indenização por danos morais ficam em terceiro lugar no ranking trabalhista. São mais de 690 mil ações que discutem perto de R$ 73 bilhões. Brito Silva lembra de decisão do Tribunal Superior do Trabalho (TST), de maio deste ano, que determinou o pagamento de indenização por danos morais devido à demissão pelo WhatsApp (AIRR-10405-64.2017.5.15.0032).
O empregador deu o seu bom dia ao então funcionário, via WhatsApp, da seguinte forma: “Bom dia, você está demitida (…) Receberá contato em breve para assinar documentos”. “Jamais recomendo que o ato demissional seja feito dessa maneira. É algo muito impessoal”, diz Brito Silva.
O valor da compensação por danos morais fixado pela 2ª Vara do Trabalho de Campinas (SP) foi de R$ 5 mil. O TRT da 15ª Região manteve a indenização, que foi confirmada pelo TST.
Já o intervalo para refeição e descanso é citado em 500 mil processos, que juntos alcançam R$ 59 bilhões, segundo o levantamento. Um dos casos é referente à inobservância dos intervalos inter e intrajornadas. Isso levou uma empresa do setor de mineração a ter que pagar R$ 50 mil por danos morais coletivos, segundo decisão do TST (processo nº 371-97.2016.5.09.0657).
Em quinto lugar, há o pedido mais abrangente da área trabalhista por poder resultar, de uma só vez, no dever de pagamento de um conjunto de verbas: o reconhecimento de vínculo de emprego. O levantamento contabilizou mais de 410 mil processos em andamento abordando o tema, totalizando perto de R$ 38 bilhões envolvidos.
“Esse tipo de pedido aumentou na medida em que as contratações informais e novas modalidades de trabalho não previstas na CLT foram surgindo, como acontece com os motoristas e entregadores de aplicativos, que cresceram na pandemia”, avalia André Morais do LG&P.
O adoecimento e acidentes por causa do trabalho também estão entre as principais reclamações do levantamento. Mas, curiosamente, ocupam só a sexta posição. Constam 373 mil processos relativos a R$ 118 bilhões.
Fonte: Valor Econômico, 13 de outubro de 2021