Lucy Fatima Estanqueiro
O objetivo do presente texto é demonstrar os possíveis efeitos da pandemia decorrente do coronavírus sobre os contratos de franquia e, se possível, a revisão contratual de tais contratos com tal fundamento.
Os contratos de franquia são contratos comerciais e espécies do gênero contratos de colaboração, entre os quais podemos citar os contratos de comissão, de agência, de distribuição, entre outros [1]. A denominação contratos de colaboração é interessante, pois demonstra o principal objetivo dos contratos que possuem natureza mercantil, qual seja, a intermediação e circulação de produtos e serviços entre os produtores e os consumidores [2].
Por meio dos contratos de colaboração, busca-se a ampliação das vendas, a garantia da presença de uma marca, a racionalização de custos, o aumento da competitividade, o aumento das relações mercantis e a otimização das mercadorias, principalmente na sociedade de consumo em massa na qual vivemos. De modo geral, assume-se a obrigação de ampliar o mercado consumidor de determinado produto ou serviço, o que se vislumbra de modo claro nos contratos de franquia.
Como todo contrato, o de franquia deve obedecer aos requisitos de validade do negócio jurídico presentes no artigo 104 do Código Civil — partes capazes, vontade livre, objeto lícito, possível, determinado ou determinável e forma prescrita ou não defesa em lei —, bem como o sinalagma entre as partes, seja na formação ou na execução do contrato.
Todavia, como assegurar a referida manutenção do contrato se refletem sobre ele consequências não previstas anteriormente, quer pelas partes, quer por todo o mercado empresarial/comercial?
A pandemia da Covid-19 pode autorizar a revisão contratual com base na teoria da imprevisão?
Pois bem. O contrato de franquia vem conceituado no artigo 1º da Lei 13.966, de 26 de dezembro de 2019 (Lei das Franquias), que revogou a antiga Lei 8.955, de 15 de dezembro de 1994. É o contrato pelo qual “um franqueador autoriza (…) um franqueado a usar marcas e outros objetos de propriedade intelectual, sempre associados ao direito de produção ou distribuição exclusiva ou não exclusiva de produtos ou serviços e também ao direito de uso de métodos e sistemas de implantação e administração de negócio ou sistema operacional desenvolvido ou detido pelo franqueador, mediante remuneração direta ou indireta, sem caracterizar relação de consumo ou vínculo empregatício em relação ao franqueado ou a seus empregados, ainda que durante o período de treinamento” [3].
De acordo com Sílvio de Salvo Venosa, pelo contrato de franquia, também conhecido por franchising, permite-se que se estabeleça um negócio próprio e com autonomia (não é total, uma vez que o franqueado fica subordinado aos termos do contrato dispostos pelo franqueador), porém com uma estrutura já montada pelo titular do sistema de distribuição [4].
Classifica-se o contrato de franquia como um contrato bilateral, escrito, típico, oneroso, comutativo, de adesão, consensual e intuitu personae [5].
Como mencionado anteriormente, o contrato de franquia é um contrato mercantil, e, como tal, sobre ele devem recair não só os princípios gerais do Direito Contratual [6], como função social do contrato, boa-fé objetiva, autonomia privada, entre outros, mas também os princípios básicos da concessão comercial e os que fundamentam a Lei 13.874 [7], de 20 de setembro de 2019 (Declaração dos Direitos de Liberdade Econômica) [8], sobretudo quando se tratar da análise e interpretação de tais contratos, ao que se deve observar o disposto no artigo 3º da referida lei, que trata dos direitos de liberdade econômica [9], e artigo 113 do Código Civil, que trata da interpretação do negócio jurídico, até porque não se discute mais atualmente a unificação do Direito Civil e do Direito Comercial, aplicando-se a este último as normas do primeiro, sempre que não houver legislação específica [10].
Por ser classificado como um contrato de colaboração, entende-se haver equilíbrio entre as partes contratantes, ambas empresárias, não restando configurado, a priori, qualquer vulnerabilidade por parte do franqueado. Aliás, a Lei 13.966/2019 (Lei das Franquias) estabelece e deixa claro que não se aplicam aos contratos de franquia as disposições do Código de Defesa do Consumidor, conforme se verifica em seu artigo 1º, cujo texto foi inserido acima.
Além do mais, o franqueador e o franqueado são considerados parceiros de negócios, compartilhando riscos (o que é inerente à atividade empresarial e aos contratos mercantis) por meio da divulgação de determinada marca/sistema/invenção, e, em contrapartida, arca-se com o pagamento de taxas de franquia (royalties) pela utilização do sistema de distribuição do franqueador [11].
Ao contrato de franquia encontram-se vinculados diversos outros contratos. O negócio jurídico firmado entre o franqueador e o franqueado é complexo, podendo estar atrelados ao contrato de franchising os contratos de cessão/uso de marca/invenção, cessão de ponto, contrato de distribuição, colaboração, transferência de tecnologia (know-how) etc., o que faz com que os contratos de franquia sejam, atualmente, os que possuem mais ramificações contratuais no ramo mercantil.
Expostas tais considerações, passa-se à análise dos efeitos da pandemia sobre os contratos de franquia, em que muito se discute se possível a configuração da vulnerabilidade do franqueado, face ao franqueador, para permitir a revisão pelo desequilíbrio do contrato.
Os efeitos da pandemia da Covid-19 foram diversos, principalmente nas relações contratuais. Como sustenta Orlando Gomes, o contrato possui importante função econômica, e implica, consequentemente, circulação de riquezas [12]. Humberto Theodoro Junior acrescenta que “nenhum cidadão consegue sobreviver no meio social sem praticar diariamente uma série de contratos” [13].
As medidas administrativas de restrição — medidas de poder de polícia — impostas pelo Estado diante do reconhecimento do estado de calamidade pública no Brasil (Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020), em face de comerciantes, implicando fechamento de suas atividades e restrição de circulação de pessoas, tiveram grande impacto na arrecadação de receitas de ambas as partes do contrato de franquia, e não somente ao franqueado. Na medida em que o franqueado deixa de exercer ou diminui o exercício de sua atividade por uma medida restritiva do Estado, o franqueador também deixa de receber sua receita pela transferência do sistema de franchising, e, consequentemente, não há circulação de riquezas [14].
Sabe-se que para que haja a revisão contratual, a lei exige a ocorrência de um fato imprevisível que acarrete um desequilíbrio, caracterizado pela onerosidade excessiva. Isto é, um problema no sinalagma funcional do contrato. A matéria da revisão judicial contratual vem prevista nos artigos 317 e 478 do Código Civil, tendo a doutrina e a jurisprudência majoritárias entendido que o nosso ordenamento jurídico adotou a teoria da imprevisão, com origem na cláusula rebus sic stantibus.
O objetivo do legislador ao prever tais mecanismos foi assegurar o princípio da justiça contratual, de modo a preservar a comutatividade nas relações obrigacionais, bem como seu equilíbrio nas prestações [15]. No mais, exige-se a demonstração objetiva do superveniente desequilíbrio das prestações [16], isto é, que diante de um fato imprevisível, não previsto originariamente pelas partes, a prestação tenha se tornado excessivamente onerosa para uma delas, acarretando a quebra da base objetiva do negócio.
Observa-se que não há, no caso dos contratos de franquia, a priori, onerosidade excessiva para uma das partes apta a autorizar a revisão judicial do contrato, mas, sim, um efeito em cascata em toda a cadeia contratual — repercussão sistêmica do coronavírus [17]. Além do mais, estamos tratando de contratos mercantis, em que não se presume a vulnerabilidade de qualquer das partes e tampouco há a transferência de riscos para uma delas. Ambas assumem integralmente os riscos do negócio: o franqueador pelo controle de qualidade de sua marca/sistema de franchising e o franqueado pelo sucesso do negócio.
Conforme se extrai de trecho do Agravo Interno Cível 2194681-38.2020.8.26.0000, de relatoria da desembargadora Lígia Araújo Bisogni, “[t]enha-se em mente que a pandemia afeta a sociedade como um todo, e, por isso, cabe ao Judiciário ter equilíbrio nas concessões feitas no bojo das relações contratuais, de forma a tentar preservar todos os setores da cadeia”. (TJSP; Órgão Julgador: 34ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível — 32ª Vara Cível; Data do Julgamento: 28/10/2020; Data de Registro: 28/10/2020).
E mais, ressalta o desembargador Alexandre Lazzarini [18], em relação aos contratos de franquia que:
“(…) Não se pode olvidar que o contrato foi firmado sem que uma das partes possa ser considerada hipossuficiente em relação à outra. Não há relação de consumo entre os contratantes, e é certo que esse tipo de contrato pressupõe uma série de avaliações dos riscos, resultados e condições contratualmente estipuladas”.
Por óbvio, cada relação contratual deve ser analisada isoladamente, mas, em termos gerais, não se vislumbra que o franqueador tenha tido extrema vantagem em prol do franqueado. Pelo contrário, o franqueador também é prejudicado (Carlos Edison do Rego Monteiro Filho fala em dimensões superlativas da pandemia [19]), razão pela qual entendo não ser possível a aplicação dos artigos 317 e 478 do Código Civil para permitir a revisão judicial do contrato de franquia, já que não configurada a onerosidade excessiva.
Soma-se a isso os artigos 421, parágrafo único, e artigo 421-A, ambos do Código Civil, que fazem presumir a paridade nos contratos empresariais e preveem o princípio da intervenção mínima nas relações contratuais, sem contar o risco pela atividade empresarial, que também deve ser levado em consideração (artigo 421-A, II, CC).
Dito isso, conclui-se que a manutenção da relação contratual é medida que se impõe. Na verdade, é a regra do Direito Contratual, inclusive ao se tratar de contratos mercantis. Em tempos de pandemia, em que não só uma das partes, mas ambos os contratantes se veem prejudicados pelos efeitos das medidas de poder de polícia impostas pelo Estado para controle da doença, a revisão judicial dos contratos deve ser excepcional, sob pena de um incontrolável efeito em cascata contratual.
Em que pese individualmente não pareça uma medida “justa”, a manutenção da relação contratual em períodos pandêmicos preserva o princípio da solidariedade social, de modo a desenvolver uma consciência coletiva sobre os impactos da pandemia.
Nesse sentido, finalizo com importante lição de André Franco Montoro, ao interpretar o conceito de justiça conforme Hans Kelsen e Jean Dabin, pelo qual “(a) justiça, não é o sentimento que cada um tem de seu próprio bem-estar ou felicidade, como pretendem alguns. Mas, pelo contrário, é o reconhecimento de que cada um deve respeitar o bem e a dignidade dos outros” [20].
[1] THEODORO JR. Humberto. Disponível em: http://genjuridico.com.br/2019/07/08/contratos-de-colaboracao-empresarial/. Acesso aos: 27 jun. 2021.
[2] Idem.
[3] BRASIL, Lei de Franquias (2019), artigo 1º. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13966.html. Acesso aos 27 de jun. 2021.
[4] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil, v. 3: Contratos. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2018. Pg. 713.
[5] Idem.
[6] NEGRÃO. Ricardo. Curso de Direito Comercial e de Empresa, v. 2: títulos de crédito e contratos empresariais. 9 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 237
[7] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil, v. 3: Contratos. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2018. Pg. 713.
[8] artigo 2º São princípios que norteiam o disposto nesta Lei: I – a liberdade como uma garantia no exercício de atividades econômicas; II – a boa-fé do particular perante o poder público; III – a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas; e
IV – o reconhecimento da vulnerabilidade do particular perante o Estado. Parágrafo único. Regulamento disporá sobre os critérios de aferição para afastamento do inciso IV do caput deste artigo, limitados a questões de má-fé, hipersuficiência ou reincidência.
[9] artigo 3º São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do artigo 170 da Constituição Federal: […] V – gozar de presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica, para os quais as dúvidas de interpretação do direito civil, empresarial, econômico e urbanístico serão resolvidas de forma a preservar a autonomia privada, exceto se houver expressa disposição legal em contrário; VIII – ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública;
[10] NEGRÃO. Ricardo. Curso de Direito Comercial e de Empresa, v. 2: títulos de crédito e contratos empresariais. 9 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 235.
[11] RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 15 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 1.622.
[12] GOMES, Orlando. Contratos. 16 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 20-21.
[13] Ibid., p. 21.
[14] Não só o franqueador sofre prejuízos, mas também as outras partes dos contratos firmados com o franqueado para a execução do contrato de franquia, como os contratos de distribuição, mandato, colaboração etc.
[15] FARIAS, Cristiano Chaves de. Et al. Manual de Direito Civil: volume único. 6 ed. Salvador: JusPodivm, 2021, p. 580.
[16] Idem.
[17] Ibid., p. 613.
[18] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Agravo de Instrumento n. 2185650-91.2020.8.26.0000, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Alexandre Lazzarini, j. 13/08/2020. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=14181041&cdForo=0. Acesso aos: 27 jun. 2021.
[19] MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Coronavírus e força maior, p. 32.
[20] MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do Direito. 21 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 127.
Fonte: Consultor Jurídico, 4 de julho de 2021