Omnicanalidade vira polêmica nos contratos entre loja e shopping

Venda on-line deve ou não ser contabilizada pela loja física? Nos novos contratos, shoppings querem participação caso loja venda ou prepare entrega de produto comprado pela internet

Fátima Fernandes

Se há um método de venda que não tem mais volta no mundo do varejo é o de omnicanalidade, isto é, o de padronizar a experiência do cliente nos vários canais, físico e on-line.

A integração dos canais de venda já virou rotina para muitas empresas, no entanto, está trazendo mais um ponto de conflito nas relações entre lojistas e administradores de shoppings.

A principal questão é a seguinte. A venda on-line, realizada a partir de uma loja em um shopping, deve ou não ser contabilizada para fins de pagamento de aluguel?

Não é preciso ter bola de cristal para adivinhar a resposta de cada um dos lados. Os lojistas entendem que a resposta é não. Para os shoppings, a resposta é sim.

E tudo isso porque boa parte dos contratos de locação entre as duas partes considera um percentual sobre o faturamento. Quanto mais a loja vende, mais paga de aluguel, e vice-versa.

Como, evidentemente, a venda on-line não fazia parte dos antigos contratos de locação, as renovações e os novos surgem agora com novas cláusulas e normas gerais.

O Diário do Comércio teve acesso a uma dessas cláusulas, que está em um recente contrato de um lojista com uma das maiores empresas de shoppings do país.

“O faturamento bruto abrange todos os negócios realizados nas lojas de uso comercial/espaços ou nelas entabulados, encaminhados ou preparados, incluindo aqueles realizados via internet, qualquer que seja a natureza e a forma das operações realizadas e seja qual for a modalidade de pagamento, mesmo que o faturamento se faça por outra unidade do lojista ou por terceiro, não importando o local da entrega ou da tradição das mercadorias vendidas, ou prestação dos serviços contratados”.

E aí surge a discussão do lado dos comerciantes.

É razoável o lojista pagar aluguel percentual por uma venda feita pela internet, cuja mercadoria somente foi retirada na loja? Neste caso, não foi o comerciante que atraiu o consumidor ao centro de compra?

O questionamento é do advogado Daniel Cerveira, que tem sido procurado por lojistas de shoppings, confusos com a pressão dos empreendimentos para participar da venda on-line.

“Omnichannel é uma questão de sobrevivência das lojas e gera ganhos expressivos na gestão do estoque. A velocidade da modernidade traz desafios que devem ser enfrentados pelos agentes com maturidade, bom-senso e com o espírito do ganha-ganha”, diz ele.

As cláusulas colocadas nos novos contratados entre shoppings e lojistas, de acordo com Cerveira, como a citada acima, levam à duplicidade de contabilização de faturamento.

Imagina, diz ele, que um cliente foi a uma loja e escolheu um produto, que, por tamanho ou por cor, estava disponível em outra loja, ambas localizadas em shoppings.

“Se o cliente comprou e recebeu a mercadoria em casa, qual loja deve contabilizar a venda para efeito de pagamento de aluguel? A que atendeu o cliente in loco ou a que faturou a venda?”

Considerando as cláusulas que têm sido colocadas nos contratos de locação, diz ele, ambas deveriam incluir a transação no faturamento, o que em sua análise, está incorreto.

POLÊMICA

Tonny Bonna, diretor da AD Shopping para as regiões Norte e Nordeste, diz que este é um assunto extremamente polêmico hoje nas relações entre shoppings e lojistas.

Isso porque é difícil, em sua avaliação, apurar quando uma venda inicia em uma loja de shopping e quando é concluída com a mercadoria saindo de outro local.

“O que temos adotado é o seguinte: a mercadoria que sai de uma loja do shopping, com emissão de nota fiscal, independentemente de onde foi iniciada a compra, se foi pelo site ou por qualquer outra loja, deve ser computada para efeito de pagamento de aluguel percentual.”

No passado, diz ele, um caso envolvendo a Lojas Americanas chegou a ter uma intervenção dos shoppings.

A Americanas colocou computadores nas lojas de shoppings para incentivar os clientes a comprar pelo site e a receber a mercadoria em casa.

“Essa ação foi combatida pelos shoppings porque o entendimento foi que o esforço de venda foi realizado com o consumidor que estava dentro do shopping, não fora”, diz Bonna.

Em sua avaliação, se a mercadoria está saindo do estoque de uma loja que emitiu nota fiscal é essa venda que deve ser computada para efeito de pagamento de aluguel.

“O controle está na nota fiscal. É muito difícil o consumidor antecipar pagamento de um produto e já sair com a nota da loja, que, geralmente, tem de acompanhar a mercadoria”, diz.

PROIBIÇÃO

Gabriel Tosetti, advogado que trabalha para shoppings, diz que os centros comerciais estão sim proibindo vendas on-line realizadas em loja física nos novos contratos de locação.

“Inclusive, hoje, nas normas gerais mais modernas existe previsão de auditoria eletrônica on-line para que os dados da loja estejam interligados aos da central dos shoppings”, diz.

Uma das cláusulas que trata deste assunto e o Diário do Comércio teve acesso é a seguinte.

“A declarante poderá, ainda, instalar equipamentos e mantê-los acoplados aos equipamentos dos lojistas, objetivando a coleta direta e imediata das vendas efetuadas, de modo que o lojista obriga-se, ainda, a interligar o sistema de informática de sua loja ao do centro de processamento de dados do shopping, ou onde a administração indicar, lançando nesse sistema os registro do faturamento de sua loja”.

Para Cerveira, sob a ótica dos comerciantes, é imprescindível uma análise de quais dados podem ser acessados diretamente pelos centros de compra.

“Tudo o que for além da verificação do faturamento, não há razão para ser aberto, como informações que envolvam dados pessoais dos consumidores, markup dos produtos, gestão de estoque, perfil de compra dos clientes”, diz.

Em sua avaliação, não é justificável o shopping ter acesso a dados sigilosos e estratégicos ou que ferem a legislação e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).

Para que os acordos saiam, alguns empreendimentos estão fazendo contratos diferenciados entre os lojistas, de acordo com um executivo de shopping ouvido pela reportagem.  

Tem contrato que prevê que a venda on-line feita a partir de uma loja entra no faturamento. Outro, não. “Cada contrato tem um detalhe, depende da marca, dos interesses”, diz.

Um dos setores que mais tem discutido com os shoppings é o de alimentação em razão da expansão da venda por delivery.

Por meio de marketing digital e redes sociais, as operadoras de fast food que estão em shoppings, por exemplo, são cada vez mais procuradas para entregas em casa.

“Faz algum sentido uma operação dessa de shopping pagar um percentual para o Ifood, um para a empresa de motoboy e outro para o shopping, que não trouxe o cliente? Se pagar tudo isso, a conta não fecha”, diz Cerveira.

REDISCUSSÃO

Ivan Ferreira, head de franquia da holding Japp, que reúne as marcas Polishop, Decor Colors e Mega Studio, diz que os contratos precisam ser rediscutidos diante do novo cenário.

Na Polishop, diz ele, o e-commerce está crescendo e, se desejar, o cliente pode retirar o produto na loja, e o faturamento é do canal on-line, não é contemplado para fins de aluguel.

“Alguns shoppings estão mais flexíveis para negociação, entenderam que o mundo mudou e precisam rediscutir os contratos. Outros, não”, diz.

Hoje, cerca de 30% das vendas da Polishop vêm do delivery. A marca já teve mais de 100 lojas em shoppings, hoje são 70. O projeto de expansão, por meio de franquia, está focado em ruas.

Um dos motivos, diz Ferreira, é justamente a dificuldade de os shoppings entenderem o novo momento do varejo. Em cinco anos, a rede quer ter 300 lojas franqueadas no estado de São Paulo.

O assunto tem sido tão polêmico que tem lojista abrindo filial fora do shopping, com novo CNPJ, apenas para faturar a venda on-line e não contabilizar para a loja do centro comercial.

Se shoppings e lojistas não se entenderem em relação à venda pela internet, diz Cerveira, várias soluções para driblar o faturamento deverão aparecer.

“E se isso acontecer, todo mundo perde, o lojista e o shopping, pois abrir loja fora do shopping tem custo e o shopping, em vez de ganhar um pouco, não vai ganhar nada”, diz Cerveira.

Já que a venda on-line só cresce no varejo, diz, é preciso uma revisão do modelo de negócio para que, no final das contas, os dois lados ganhem.

Fonte: Diário do Comércio, 23 de abril 2024

Share on twitter
Share on facebook
Share on linkedin
Share on email
Podemos ajudar?