Locações comerciais e a lei da liberdade econômica

A lei da liberdade econômica estabelece paridade em contratos empresariais. Tribunais aplicam normas às locações comerciais, mas sua extensão à Lei do Inquilinato é questionável. Princípios constitucionais devem guiar a interpretação dos contratos.

Por Francisco dos Santos Dias Bloch

A lei da liberdade econômica (lei 13.874/19) estabeleceu normas que criam presunção de paridade e simetria entre os contratantes, em se tratando de contratos empresariais, considerando as alterações estabelecidas nos arts. 421 (parágrafo único) e 421-A do Código Civil.1 E o Projeto do Novo Código Civil segue a mesma tendência, preservando as modificações trazidas pelo legislador em 2019, tais como os princípios da intervenção mínima e da excepcionalidade na revisão judicial dos contratos.2

Os Tribunais brasileiros frequentemente têm aplicado as novas normas aos contratos de locação comercial3. Resta, entretanto, verificar a possibilidade de aplicação da lei da liberdade econômica em tais situações, considerando a regulamentação das locações comerciais pela lei 8.245/91, a lei do inquilinato.

Neste contexto, é necessário estabelecer que a liberdade contratual, muitas vezes relativizada nos Tribunais, consiste em prerrogativa inerente à livre iniciativa, positivada nos arts. 1.º, inciso IV 170, “caput” da Constituição Federal. Há outros direitos e prerrogativas a serem defendidos com base na Constituição, todavia, no que diz respeito aos contratos de locação comercial, especialmente a função social da propriedade.

É relevante, assim, verificar se aplicam-se a tais contratos as regras e princípios estabelecidos nos arts. 421 e 421-A do Código Civil: é sobre este assunto que trataremos nas próximas linhas.

O contrato de locação de imóvel urbano, e em particular o contrato de locação de imóvel urbano para fins comerciais, é regulamentado pela lei 8.245/91, a lei do inquilinato. Conforme o art. 79 daquela norma, o Código Civil e o CPC aplicam-se às relações locatícias apenas em caráter subsidiário, quando não houver regra específica no texto legal pertinente.4

Mais relevante para o tema sob análise, todavia, é o texto do art. 45 da lei 8.245/91: segundo referido artigo de lei, “São nulas de pleno direito as cláusulas do contrato de locação que visem a elidir os objetivos da presente lei, notadamente as que proíbam a prorrogação prevista no art. 47, ou que afastem o direito à renovação, na hipótese do art. 51, ou que imponham obrigações pecuniárias para tanto”.

A primeira parte do texto estabelece que “são nulas de pleno direito” as cláusulas dos contratos de locação que visem a elidir, ou afastar, “os objetivos da presente lei”. Entre estas cláusulas nulas – ou seja, apenas em caráter exemplificativo – são apontadas certas disposições contratuais inadmissíveis, como aquelas que afastem o direito à ação renovatória de locação comercial, prevista no artigo 51 da norma, ou imponham obrigações em dinheiro para o manejo daquela ação.

A análise atenta dos arts. 45 e 79 da lei do inquilinato permite concluir o seguinte:

A lei 8.245/91 é norma de caráter principiológico, na medida em que possui certos objetivos a serem levados em conta quando de sua interpretação e aplicação.

A lei 8.245/91 veicula normas e regras de ordem pública, capazes de afastar do sistema jurídico, por vício de nulidade absoluta (insanável), as disposições contratuais que as ofendam.

O Código Civil aplica-se às locações comerciais apenas em caráter subsidiário, quando determinada situação não for expressamente regulamentada pela lei do inquilinato.

As conclusões acima são extremamente relevantes ao analisar as normas trazidas pela lei da liberdade econômica ao Código Civil, assim como a possibilidade de sua eventual aplicação às locações comerciais.

Já se confirmou que o Código Civil aplica-se somente em caráter subsidiário aos contratos de locação comercial. A questão que se põe, todavia, é a seguinte: esta aplicação subsidiária deverá obedecer a quais princípios, a quais normas principiológicas? Existe, afinal, presunção de paridade e simetria nestes contratos?

A lei do inquilinato estabelece deveres ao locador (art. 22) e ao locatário (art. 23), além de positivar diversas normas de caráter material. Também estabelece normas de caráter processual referentes às assim denominadas “ações locatícias” (ações de despejo, revisionais de aluguel, renovatórias de locação comercial, e consignatórias de aluguel e valores) (artigo 58).

Considerando, todavia, os objetivos da lei 8.245/91, assim como o teor das normas por ela positivadas, entendemos que não é possível falar em presunção de paridade ou simetria nos contratos de locação comercial, existindo verdadeira exceção ao disposto no art. 421-A do Código Civil. Tampouco é possível afirmar que aplicam-se os princípios da intervenção mínima e da excepcionalidade da revisão contratual em tais negócios jurídicos, tal como expostos no parágrafo único do art. 421 do referido texto legal.

E isto ocorre porque a lei do inquilinato não trata locador e locatário como iguais, protegendo de forma expressa os interesses do inquilino tanto em situações gerais, aplicáveis a toda espécie de locação, quanto em situações específicas, aplicáveis somente às locações comerciais.

A título de exemplo, cabe apenas ao inquilino demandar a renovação compulsória do contrato de locação comercial (art. 51)5; e cabe apenas ao inquilino o direito potestativo de resilir a locação durante a vigência do contrato6, ao mesmo tempo em que o texto legal proíbe ao locador a retomada do imóvel durante aquele prazo (art. 4.º)7. Ainda, o locatário, em ação de despejo por falta de pagamento, pode afastar a mora e preservar a relação contratual depositando em juízo o valor exigido (art. 62, inciso I).8

É possível concluir, assim, que os “objetivos da presente lei”, aludidos no art. 45 da lei 8.245/91, incluem a criação de um regime jurídico específico capaz de proteger os interesses do inquilino em face do locador. E este regime protetivo, a nosso ver, é incompatível com a presunção de paridade e simetria prevista para os contratos empresariais estabelecidos no art. 421-A do Código Civil, e com os princípios estabelecidos no parágrafo único do art. 421.

Ainda, e neste contexto, o próprio “caput” do art. 421-A do Código Civil lança uma pá de cal sobre o assunto, ao estabelecer que “Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais (…)”.

A rigor, e em nosso entender, a simples existência de lei específica regulamentando determinada espécie de contrato empresarial afasta a presunção de paridade e simetria prevista no Código Civil, mesmo conforme o texto supra mencionado, dado que a presunção é afastada quando existem “regimes jurídicos previstos em lei especial”. E a exceção legal faz sentido: se o legislador entendeu pela necessidade de criar um regime jurídico para regular determinada espécie de contrato empresarial, é bastante claro que inexiste paridade e simetria entre os contratantes.

Concluímos, assim, que a presunção de paridade e simetria, assim como as regras e princípios positivados nos arts. 421, parágrafo único e 421-A do Código Civil, não se aplicam às locações comerciais, seja com base na exceção prevista na parte final do “caput” do próprio art. 421-A, seja com base na incompatibilidade de regimes jurídicos em face da lei 8.245/91.

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1 Código Civil: “Art. 421.  A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. Art. 421-A.  Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: (…)”

2 Projeto do Novo Código Civil: Redação da Relatória Geral ao artigo 421, parágrafo primeiro: “Nos contratos civis e empresariais, paritários e simétricos, prevalecem o princípio da intervenção mínima e da excepcionalidade da revisão contratual.”

3 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Apelação n.º 1024214-77.2020.8.26.0506, j. 27/3/2024: “Apelação. Ação declaratória de inexigibilidade de débito c./c. indenização por danos materiais, morais e repetição de indébito. Contrato de locação para fins comerciais. (…) Prevalência do princípio da intervenção mínima nas relações contratuais, nos termos do parágrafo único do art. 421 do Código Civil (Lei. 13.874 Lei da Liberdade Econômica).”

4 Lei 8.245/91: “Artigo 79. No que for omissa esta lei aplicam-se as normas do Código Civil e do Código de Processo Civil.”

5 Lei 8.245/91: “Art. 51. Nas locações de imóveis destinados ao comércio, o locatário terá direito a renovação do contrato, por igual prazo, desde que, cumulativamente: I – o contrato a renovar tenha sido celebrado por escrito e com prazo determinado; II – o prazo mínimo do contrato a renovar ou a soma dos prazos ininterruptos dos contratos escritos seja de cinco anos; III – o locatário esteja explorando seu comércio, no mesmo ramo, pelo prazo mínimo e ininterrupto de três anos.”

6 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Apelação n.º 1004709-33.2022.8.26.0441, julgamento 27 de março de 2024: “Nada obstante, embora não se possa atribui-la esse motivo, nada impede que a locatária proceda à rescisão do pacto . Isso porque a devolução do imóvel é seu direito potestativo e não está condicionado a pagamento de aluguéis eventualmente em atraso ou outros fatores condicionantes ao recebimento das chaves. Trata-se de direito subjetivo que não admite condicionamento ao pagamento de eventuais aluguéis, multas ou realização de vistoria de constatação da situação do imóvel, conforme precedentes deste E. Tribunal de Justiça.”

7 Lei 8.245/91: “Art. 4.º  Durante o prazo estipulado para a duração do contrato, não poderá o locador reaver o imóvel alugado. Com exceção ao que estipula o § 2o do art. 54-A, o locatário, todavia, poderá devolvê-lo, pagando a multa pactuada, proporcional ao período de cumprimento do contrato, ou, na sua falta, a que for judicialmente estipulada.”

8 Lei 8.245/91: “Art. 62.  Nas ações de despejo fundadas na falta de pagamento de aluguel e acessórios da locação, de aluguel provisório, de diferenças de aluguéis, ou somente de quaisquer dos acessórios da locação, observar-se-á o seguinte: I – o pedido de rescisão da locação poderá ser cumulado com o pedido de cobrança dos aluguéis e acessórios da locação; nesta hipótese, citar-se-á o locatário para responder ao pedido de rescisão e o locatário e os fiadores para responderem ao pedido de cobrança, devendo ser apresentado, com a inicial, cálculo discriminado do valor do débito;”

Francisco dos Santos Dias Bloch, mestre e pós-graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É advogado formado pela PUC/SP e atua em São Paulo, no escritório Cerveira, Bloch, Goettems, Hansen & Longo Advogados Associados, nas áreas de Direito Contencioso Cível e Direito Imobiliário.

Fonte: Migalhas, 12 de abril de 2024

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