Decisão de 2019 abriu caminho para abolir cobrança, mas ANS entende que ela não é válida para todos os casos
Cláudia Collucci
Beneficiários de planos de saúde têm conseguido na Justiça o direito de não pagar multas e aviso prévio por rescisão de contratos com as operadoras. Em suas decisões, juízes de primeira instância e desembargadores entendem que essa cobrança foi anulada pela Justiça Federal em 2019.
Somente no Tribunal de Justiça de São Paulo, tramitaram mais de 1.500 processos de segunda instância relacionados ao tema em 2020, a maioria com decisões favoráveis aos consumidores. As operadoras e a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) entendem que a cobrança, em determinadas circunstâncias, é legítima.
Escritórios de advocacia também relatam uma demanda crescente de clientes com essas queixas. Há casos em que o montante de multas e aviso prévio cobrado pelas operadoras chega a R$ 8 milhões.
São situações como a do empresário Rubens Ribeiro, de São Paulo, que durante a pandemia precisou readequar as despesas da empresa e decidiu mudar o plano de saúde após um ano de tê-lo contratado. Com nove vidas, o plano tinha um custo mensal de R$ 23 mil.
“Tentamos negociar, mas a operadora foi irredutível em relação ao aviso prévio e à multa, que chegavam a R$ 80 mil. Para nós, era muito inviável”, conta. Na Justiça, ele conseguiu uma liminar favorável. “As pessoas precisam ir atrás dos seus direitos”, reforça Ribeiro.
Com Ana Luisa e o marido aconteceu o mesmo. Eles haviam contratado um plano no valor total de R$ 3.400, mas três meses depois decidiram cancelá-lo porque o marido conseguiu um emprego que oferecia o benefício a ambos. Mas foram surpreendidos com uma cobrança de R$ 17 mil, referente a multa e aviso prévio. O débito também foi anulado na Justiça.
A suspensão e a rescisão contratual lideravam o ranking das queixas de usuários na ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) em outubro de 2020, segundo o índice de abertura de processos administrativos da agência. Representavam 26,1% do total.
Em geral, a exigência de cumprimento de aviso prévio de 60 dias para o cancelamento do contrato e multa pela rescisão antes do período de 12 meses está prevista no contrato assinado entre o beneficiário e o plano de saúde (cláusula de fidelidade). As operadoras também se baseiam em uma resolução da ANS de 2009 que permitia a cobrança.
Ocorre que uma decisão do Tribunal Regional Federal da Segunda Região (TRF-2) declarou a ilegalidade da fidelização e determinou a mudança da norma da ANS que estabelecia a obrigatoriedade de o consumidor permanecer pelo menos 12 meses no plano.
A ação, transitada em julgado (quando não há mais possibilidade de recurso), foi movida pelo Procon/RJ contra a ANS. A partir dessa decisão, juízes de primeira instância e desembargadores dos Tribunais de Justiça têm declarado a ilegalidade da cobrança.
Segundo o advogado especialista em direito à saúde Rafael Robba, do escritório Vilhena Silva Advogados, com a pandemia, essas queixas aumentaram bastante. “Tem muita gente mudando de plano e aí recebe cobrança tanto da multa, quando os contratos têm menos de 12 meses, quanto a cobrança dos dois meses de aviso prévio.”
Ele afirma que, mesmo antes da decisão da Justiça Federal de 2019, a cobrança já era entendida como abusiva. “A ANS tem sido omissa para impedir que as operadoras continuem fazendo cobranças indevidas na hora de o usuário rescindir o contrato.”
Embora a ANS já tenha mudado a norma que previa a cobrança de multa e aviso prévio, as operadoras continuam com a permissão de colocar essa previsão em determinados tipos de contrato. “Aí os consumidores têm que ficar acionando a Justiça individualmente para se livrar das cobranças”, afirma o advogado.
Robba diz que muitos consumidores procuram a ANS antes de ingressar com as ações judiciais, mas a agência não soluciona a questão.
Em nota enviada à Folha, a agência informa que, após a decisão do TRF, anulou parágrafo único do artigo 17 da resolução normativa nº 195 (que tratava da fidelização].
A agência diz, no entanto, que existem duas situações diferentes: uma é o cancelamento total de contrato coletivo; a outra é a saída de usuários de um determinado contrato.
Na primeira situação, segundo a ANS, quando um contrato coletivo como um todo é cancelado, é permitida a exigência de aviso prévio ou cobrança de multa rescisória à pessoa jurídica contratante (empresa ou associação, por exemplo), desde que essas questões estejam previstas no contrato. Mas mesmo com essa permissão da ANS, há várias decisões judiciais derrubando a cobrança.
De acordo com a agência, na segunda situação, quando usuários de um plano de saúde individual, familiar ou coletivo decidem sair do contrato, é proibida a exigência de prazo de permanência ou de aviso prévio. Ou seja, eles podem sair a qualquer momento.
“É importante deixar claro que a operadora ou a administradora de benefícios não poderá, em hipótese alguma, cobrar multa rescisória de beneficiário de plano coletivo. Apenas para o caso do empresário individual é que poderá haver cobrança de multa rescisória diretamente ao usuário, se previsto em contrato, visto que, neste caso, ele é o beneficiário e a parte contratante do plano coletivo simultaneamente.”
Segundo a agência, o cancelamento de vínculo a pedido do beneficiário deve ter efeito imediato a partir da data da ciência do pedido pela operadora ou administradora de benefícios.
“O beneficiário que não estiver satisfeito com seu plano de saúde pode optar por mudar de plano levando consigo as carências já cumpridas, o que chamamos de portabilidade de carências.”
Em nota, a Abramge (Associação Brasileira de Planos de Saúde) informou que, após decisão judicial e posterior alteração da resolução pela ANS, as operadoras seguem o que ficou estabelecido, ou seja, que “as condições de rescisão do contrato ou de suspensão de cobertura, nos planos privados de assistência à saúde coletivos por adesão ou empresarial, devem constar do contrato celebrado entre as partes”.
“A manutenção e o respeito aos contratos são fundamentais para a segurança jurídica dos envolvidos, assim como o equilíbrio e a sustentabilidade econômico-financeira também são fundamentais para a continuidade dos serviços oferecidos pelos planos de saúde”, diz a Abramge em nota.
A Fenasaúde (Federação Nacional de Saúde Suplementar) afirma que a regulação dos planos de saúde é clara ao citar que “as condições de rescisão do contrato ou de suspensão de cobertura, nos planos privados de assistência à saúde coletivos por adesão ou empresarial, devem também constar do contrato celebrado entre as partes”.
Portanto, segundo a Fenasaúde, a cobrança de multa por cancelamento é legítima, caso conste em contrato.
A federação destaca também que durante a pandemia as operadoras associadas flexibilizaram suas políticas de negociação e pagamento, inclusive aderindo voluntariamente a sugestões da ANS para manutenção de clientes. “Esforço que vêm se refletindo no crescimento do acesso à saúde suplementar e retomada de clientes, desde junho de 2020”, diz a Fenasaúde.
Fonte: Folha de S. Paulo, 10 de janeiro de 2022