Adriana Aguiar
A Justiça tem determinado a penhora de salário para o pagamento de dívida, apesar de o Código de Processo Civil (CPC) proibir expressamente a medida. As decisões são geralmente contra devedores com rendimentos considerados acima da média e sem nenhum outro bem. O limite adotado pelos magistrados é de 30% dos vencimentos.
A medida já foi autorizada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e tem sido usada nas mais diversas situações. A proprietária de um imóvel, por exemplo, obteve a penhora de 15% do salário de um coronel. Ele ganha R$ 18 mil e deve R$ 50 mil em alugueis. Um advogado conseguiu 15% sobre os R$ 14 mil recebidos por um delegado. A dívida de honorários é de R$ 30 mil. E um hospital obteve penhora de 20% do salário de R$ 5 mil de uma pessoa que tem dívidas hospitalares de R$ 51 mil.
Nesses casos, os valores são descontados pelo próprio empregador, em cumprimento à determinação judicial, depositados em uma conta judicial, para posterior resgate pelo credor. Nas decisões, fica autorizada a penhora até o limite da dívida.
O advogado Alexandre Matias, sócio da Advocacia Maciel, que atuou nos três casos, afirma que o Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJ-DF) e o STJ possuem precedentes que relativizam a impenhorabilidade do salário até o limite de 30%, fazendo uma ponderação entre a dignidade da pessoa humana e a efetividade do pagamento da dívida.
De acordo com ele, houve uma mudança significativa na redação do artigo que trata da impenhorabilidade no CPC de 2015. No novo texto não há o termo “absolutamente impenhoráveis”, previsto na norma de 1973, o que permitiria alguma flexibilização.
A penhora, contudo, só tem sido adotada em casos excepcionais, quando esgotada a procura por outros bens, como dinheiro, imóveis e automóveis, listados no artigo 835 do CPC. E quando, por meio do Imposto de Renda, verifica-se o pagamento mensal de salário. “Às vezes, são vencimentos muito acima da média brasileira e, mesmo assim, o devedor se sente confortável em não pagar sua dívida”, diz Alexandre Matias.
Ao analisar o pedido de um hospital (processo nº 0725233-88.2020.8.07.0000), a maioria dos desembargadores da 8ª Turma do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJ-DF) foi a favor da penhora do salário de um paciente, vencido o relator, desembargador Mario-Zam Belmiro Rosa. Para ele, o artigo 833, inciso IV, do Código de Processo Civil de 2015 é claro e proíbe expressamente a medida.
O desembargador Diaulas Costa Ribeiro, que apresentou o voto vencedor, destacou que a Corte Especial do STJ firmou o entendimento, em decisão de março de 2019, de que a regra geral da impenhorabilidade de salários pode ser afastada quando for observado percentual que assegure a dignidade do devedor e de sua família (EREsp 1582475).
O julgador ainda cita decisão recente, publicada em junho deste ano, da 2ª Seção do STJ. O mesmo entendimento foi adotado em uma ação de despejo e cobrança de alugueis (EREsp 1701828).
Segundo o advogado Luís Cascaldi, sócio de contencioso e consultivo cível do Martinelli Advogados, os pedidos de penhora de salário têm sido frequentes nas execuções, quando se diminui o campo de atuação de recuperação de crédito. “Nos deparamos com todos os tipos de decisão”, diz.
No Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), afirma, existem juízes resistentes à adoção da medida. O advogado ressalta, contudo, que a tese ganhou mais força após o julgamento da Corte Especial do STJ, em 2019. “Nos casos em que o juiz vê que existe dinheiro de sobra, não há motivo para não pagar a dívida.”
A 6ª Turma do TJ-DF também decidiu, por maioria, a favor da penhora numa ação de despejo e cobrança de alugueis, até o limite de R$ 50 mil. Para o relator, desembargador Alfeu Machado, “também merece proteção o direito do credor à satisfação de seu crédito (incluída a atividade satisfativa), uma vez que o salário de quase R$ 18 mil, ainda mesmo com penhora de 15%, continuará com valor que não compromete a subsistência do devedor ou de sua família”.
No entendimento do magistrado, a medida “nem de longe configura sua ruína financeira, já que é devedor reconhecido em processo judicial, responsável pela satisfação do débito com seus bens, presentes e futuros, para o cumprimento de suas obrigações” (processo nº 0700218-54.2019.8.07.0000).
Em um caso em que o advogado Alexandre Matias atua em causa própria, ele conseguiu decisão da 15ª Vara Cível de Brasília para penhorar 15% do salário de um delegado, que recebe cerca de R$ 14 mil mensais, para o pagamento de honorários. A dívida é de cerca de R$ 30 mil.
O juiz João Luis Zorzo entendeu que a situação está entre as exceções previstas no artigo 833 do CPC. Isso porque o parágrafo 2º diz que essa vedação não se aplica para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como a valores excedentes a 50 salários mínimos mensais. Segundo o magistrado, existem diversos precedentes no STJ que reafirmam a natureza alimentar dos honorários advocatícios.
A advogada Maria Tereza Tedde, do Salusse Marangoni Advogados, contudo, pondera que, além de haver uma proibição expressa da penhora de salários, essas decisões teriam que ser aplicadas apenas quando há fraude comprovada ou em casos muito excepcionais. “Dá um certo medo porque são questões muito subjetivas, como medir o que seria muito ou pouco ou suficiente para preservar a dignidade”, questiona.
Para ela, como o Brasil segue cada vez mais os precedentes, é perigoso que essa orientação passe a ser aplicada de forma irrestrita. “Dependendo dos gastos, da quantidade de dependentes, mesmo um salário alto pode estar todo comprometido.”
Fonte: Jornal Valor Econômico, 20 de novembro de 2020