Estratégia envolve créditos de PIS e Cofins obtidos por meio da “tese do século”
Beatriz Olivon e Jéssica Sant’Ana
Empresas passaram a adotar uma nova estratégia, considerada arriscada por especialistas e pela própria Receita Federal, para aproveitar os benefícios fiscais previstos no programa de autorregularização incentivada lançado pelo governo federal – espécie de “Refis” instituído pela Lei nº 14.740, de 2023. Consiste em retificar declarações de compensação para retirar créditos de PIS e Cofins, obtidos normalmente com a chamada “tese do século”, pagar os valores de impostos devidos por meio do parcelamento aberto e utilizar posteriormente esses créditos.
A nova estratégia leva em conta as vantagens do programa, que permite o pagamento de dívidas tributárias, em parcelas, sem multa ou juros. Metade do valor deve ser paga à vista. A outra em até 48 vezes, em parcelas mínimas de R$ 200 e R$ 500, corrigidas pela Selic. É possível ainda quitar impostos com prejuízo fiscal e precatórios – inclusive de terceiros. Podem aderir ao programa pessoas físicas e jurídicas, exceto as do Simples Nacional. A adesão começou no dia 5.
Entre alguns tributaristas, a estratégia é considerada “uma distorção do sistema”. Eles têm conhecimento de empresas que optaram pela estratégia ou ao menos os consultaram sobre a ideia.
A resposta dada às consultas é que há riscos, afirmam. A estratégia de “maliciosamente” fazer sumir créditos, explicam, pode ser punida com multa qualificada, de até 150% do valor devido. Outra consequência possível é a representação fiscal para fins penais – o envio de informações ao Ministério Público para averiguação de fraude.
A Receita Federal pode ainda, acrescentam os especialistas, incluir pessoas físicas (sócios ou administradores) nas autuações como responsáveis solidárias pelos tributos devidos, até com a possibilidade de arrolamento de bens como garantia.
As empresas que fizerem isso serão fiscalizadas, segundo técnicos do governo ouvidos pelo Valor. O sistema da Receita Federal, dizem, consegue identificar esse tipo de ação – e deve considerá-lo como fraude.
Já que o contribuinte teria que fazer uma retificação, como se tivesse pago com créditos por engano, e depois usá-los em nova compensação, haveria fraude, explicam os técnicos. “Teria que retificar uma vez para mentir para o Fisco e retificar em seguida, confessando que mentiu na primeira”, afirma uma fonte. De acordo com os técnicos, será dado “tratamento adequado” a “fraudadores” e “espertalhões”.
Para o advogado João Marcos Colussi, sócio do escritório Mattos Filho Advogados, essa prática é “arrojada”. “Tenho certeza que o Fisco vai rejeitar esse tipo de justificativa. E no Poder Judiciário o histórico de jurisprudência sobre regimes de regularização, do tipo Refis, é sempre no sentido de que as vantagens são dadas dentro de um contexto que não pode ser maximizado”, afirma.
Colussi destaca que a autorregularização incentivada implica negociação, em que as partes precisam ceder. “Quando o contribuinte faz uma retificação de créditos no sistema eletrônico, a Receita Federal fica sabendo na hora que ele está fugindo do espírito da lei”, diz.
O tributarista Daniel Tessari, do Kincaid Mendes Vianna Advogados, afirma que o escritório recebeu demanda de empresas que receberam a oferta de retificação por parte de consultorias e pediram ou pretendem pedir a retificação de declarações de compensações. Ele considera o pedido viável, mas lembra que é necessário cautela e, além disso, sugere levar a questão ao Judiciário.
“A redação da lei é muito aberta”, diz ele, destacando que uma retificação de escrita contábil precisa de justificativa e que as empresas devem considerar o risco. Para ele, não é possível dizer que a operação não será interpretada como fraude.
“É necessário analisar o caso concreto e, preferencialmente, propor um mandado de segurança preventivo. Isso não vai fugir de uma discussão judicial, pela própria linha que a União vem expondo sobre a extensão de prazo para adesão [tema que vem sendo discutido em liminares]”, afirma o advogado.
Em nota, a Receita Federal informa que a caracterização ou não de fraude deve ser analisada em cada caso concreto e que o sistema vai identificar se as retificações forem feitas. O órgão reforça que a autoridade tributária aplica as multas correspondentes e o caso pode ser encaminhado ao Ministério Público Federal, mediante representação, conforme disposto na Portaria RFB nº 1.750, de 2018.
Outra questão ligada ao programa de autorregularização incentivada já está sendo discutida na Justiça. Liminares concedidas em São Paulo e no Paraná garantem a inclusão de dívidas com a Receita Federal constituídas até abril deste ano, e não somente até 30 de novembro de 2023, como defende o órgão.
As empresas alegam nos processos que esse seria o limite estabelecido pela lei e a Instrução Normativa (IN) nº 2168, de 2023, que a regulamenta. Porém, a Receita Federal, na seção “Perguntas e Respostas” do site do órgão, afirma que podem ser incluídos no parcelamento “tributos que ainda não tenham sido declarados cujo vencimento original seja até 30 de novembro de 2023”.
A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) vai recorrer das liminares. Para os procuradores, a tese dos contribuintes é muito agressiva e causa espanto e preocupação, uma vez que pode comprometer a arrecadação do primeiro trimestre. Eles afirmam que a lei, a IN e a cartilha não podem ser interpretadas isoladamente.
Fonte: Valor Econômico, 2 de fevereiro de 2024