Discussão surgiu após o STF derrubar cobrança na transferência interestadual de mercadorias
Beatriz Olivon
Empresas estão recorrendo à Justiça para garantir créditos de ICMS. A corrida começou depois que o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou a cobrança do imposto na transferência interestadual de mercadorias entre estabelecimentos de um mesmo contribuinte. Uma das primeiras decisões, que pode ser usada como precedente para a tese, beneficia uma companhia do setor têxtil.
O problema surgiu porque os ministros, no julgamento, não trataram dos créditos tributários, abrindo a possibilidade de os Estados passarem a negar o uso dos valores acumulados, o que São Paulo já faz. A questão pode ser abordada na análise de recurso contra a decisão do STF (embargos de declaração), que ainda está pendente de julgamento.
Na sessão, realizada em abril deste ano, os ministros consideraram inconstitucionais dispositivos da Lei Kandir (Lei Complementar nº 87, de 1996) que autorizam a cobrança de ICMS sobre deslocamento de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte.
Os ministros já tinham entendimento contra a tributação, com repercussão geral. O julgamento foi realizado em agosto de 2020. Mas só consideraram a previsão inconstitucional na análise da ação declaratória de constitucionalidade, o que afetaria também os créditos, já que fica extinta a base legal.
O Comitê Nacional de Secretários de Fazenda, Finanças, Receita ou Tributação dos Estados e do Distrito Federal (Comsefaz) defendeu, em ofício encaminhado em maio ao presidente do Supremo, ministro Luiz Fux, que a decisão leva à anulação de créditos anteriores do ICMS.
“Se não for excepcionalizada por legislação interna própria cujos reflexos se voltem contra o mesmo erário estadual que a instituiu, a regra constitucional de anulação dos créditos é observada, mesmo em casos de operações internas”, afirma o Comsefaz.
Enquanto pendentes esclarecimentos sobre a decisão do STF, acrescenta no documento, há possibilidade de multiplicação do contencioso administrativo e judicial sobre o assunto. No ofício, a entidade pede ainda que a declaração de inconstitucionalidade da cobrança tenha validade a partir do exercício de 2023, para que Estados e o Distrito Federal ajustem suas legislações.
O pedido é semelhante ao que foi feito pelo Estado do Rio Grande do Norte nos embargos no STF. “Os efeitos econômicos da decisão não se limitam à alteração na sistemática de partilha de receitas tributárias entre entes federados, atingindo, de igual modo, os próprios contribuintes, dada a vedação constitucional ao aproveitamento de créditos anteriores à operação sobre a qual não incide o tributo”, afirma.
O Estado diz ainda que poderia exigir o estorno dos créditos das operações anteriores àquela não sujeita à incidência do tributo, autorizando o Estado de destino a exigir o ICMS integral (sem crédito) nas operações de saída internas de mercadorias.
Enquanto não há manifestação do STF, contribuintes recorrem à Justiça para manter seus créditos. Uma das primeira liminares foi concedida a uma empresa do setor têxtil, que tem filiais no Estado de São Paulo (processo nº 1007481-51.2021.8.26.0037). A companhia transfere produtos entre a matriz e filiais, sem a ocorrência da venda dos bens.
Na decisão, de julho, o juiz Leonardo Issa Hallah, da 1º Vara da Fazenda Pública de Araraquara, cita a Súmula nº 166 do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Segundo o texto, não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte. A parte dos créditos não foi citada na decisão que levou à edição do texto. Por meio de embargos, porém, o uso dos valores foi permitido.
O advogado que representa a empresa, Thiago Amaral, do escritório Demarest Advogados, explica que o caso tem uma diferença em relação à tese da ADC 49. Envolve deslocamentos dentro do próprio Estado. “Depois da ADC tem surgido essa discussão, que não estava no radar das empresas. Esse é um bom precedente para essa tese”, diz ele, acrescentando que a não cumulatividade do ICMS tem exceções claras, como a isenção.
Para o tributarista Samir Nemer, como os Estados ainda preveem a tributação, as empresas podem ser cobradas. Um caminho para evitar autuações fiscais, afirma, são as liminares preventivas. “Os Estados desafiam o entendimento da jurisprudência há mais de 25 anos, cobrando o ICMS e isso não mudou desde a decisão na ADC 49”, diz.
O precedente paulista, apesar de positivo, ainda não define a questão, segundo Vinícius Jucá, especialmente por tratar de transferência de créditos entre estabelecimentos localizados em Estados diferentes.
Para Lisandra Pacheco, sócia do mesmo escritório, as decisões anteriores sobre o tema não tinham o mesmo impacto da ADC, mas ela não afeta a possibilidade de créditos, já que isso não foi analisado pelo STF. “O Supremo só aplicou a jurisprudência nesse julgamento, mas o resultado será catastrófico. As empresas criaram estruturas operacionais baseadas nesse sistema.”
Em nota, a Procuradoria da Fazenda de São Paulo informa que aguarda o julgamento dos embargos de declaração apresentados na ADC 49. Eventual impacto na arrecadação do Estado ainda está sendo estimado pela Secretaria da Fazenda.
Fonte: Valor Econômico, 4 de agosto de 2021