Quase a metade das ações sobre criptoativos, distribuídas entre 2021 e 2024, trata de penhora
Adriana David
Credores estão buscando no Judiciário o bloqueio de criptoativos de devedores. Levantamento feito pela plataforma Jusbrasil, a pedido do Valor, mostra que quase a metade dos cerca de 10 mil processos com menção a criptomoedas distribuídos na primeira instância da Justiça paulista, entre os anos de 2021 e 2024, refere-se a penhora e execuções (47,83%).
Os demais processos, de acordo com o estudo, tratam de disputas contratuais (15,59%), fraudes e esquemas fraudulentos (9,41%), regulamentação e compliance (7,42%) e outros temas (10,05%). “Para além de dinheiro, imóveis, veículos, os credores estão tentando buscar também criptoativos”, diz a advogada Camilla Jimene, head do contencioso digital e sócia do escritório Opice Blum.
A jurisprudência, acrescenta a especialista, reconhece que é possível bloquear criptoativos por meio das exchanges (corretoras), o que amplia a lista de bens penhoráveis prevista no Código de Processo Civil (CPC). De acordo com o estudo, a tendência é ser mais favorável ao requerente no primeiro grau e desfavorável no segundo grau. “O que mostra que o assunto ainda é complexo para o Poder Judiciário e que não há um posicionamento pacífico”, afirma Camila.
Há precedentes favoráveis aos credores no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP). Uma das decisões é da 17ª Câmara de Direito Privado. Em seu voto, o relator, desembargador Luís H. B. Franzé, afirma que “tal abordagem não apenas otimiza o uso dos recursos judiciais, mas também alinha as ações de recuperação de ativos à realidade financeira do devedor, garantindo uma solução mais rápida e eficiente para a liquidação do débito” (agravo de instrumento nº 2022544-11.2024.8.26.0000).
A pesquisa também mostra os principais desafios enfrentados pelo Judiciário ao lidar com criptomoedas. Segundo Mateus Aimoré, do MAC Advogados, a penhora e execução de criptoativos têm sido um desafio devido à natureza descentralizada e à dificuldade de rastreamento desses ativos.
“A grande maioria das decisões judiciais reconhece que os ativos digitais possuem alto valor econômico e liquidez, mas há muitas dificuldades práticas para efetivar essas penhoras porque é necessário identificar a carteira digital do devedor e garantir que os ativos não sejam transferidos para outra carteira antes da execução”, explica Aimoré. “Os desafios do Judiciário são significativos. Exigem uma combinação de aperfeiçoamento legislativo constante, para se adaptar ao dinâmico mercado dos criptoativos, capacitação técnica contínua de juízes e advogados e cooperação internacional para investigar crimes e recuperar ativos.”
O advogado lembra que fintechs que lidam com criptoativos não estão conectadas ao sistema usado pela Justiça para penhora (Sisbajud), então é necessário enviar pedidos diretamente para saber se o devedor possui criptomoedas e qual o valor atualizado delas. “Esses fatores tornam o processo lento e, às vezes, ineficaz.”
Já o tema disputas contratuais reflete conflitos relacionados a contratos que envolvem criptomoedas. Um exemplo comum ocorre quando investidores têm problemas com corretoras ou empresas especializadas em criptoativos. Nesses casos, a Justiça geralmente reconhece que a pessoa física é mais “vulnerável” e aplica o Código de Defesa do Consumidor (CDC). São comuns, segundo Aimoré, casos em que as corretoras de criptoativos negam os saques ou resgates pelos clientes ou criam condições abusivas para que exerçam seus direitos.
O tema fraudes e esquemas fraudulentos envolve questões como pirâmides financeiras, promessas falsas de lucros garantidos ou mesmo investimentos inexistentes. O ambiente das criptomoedas, diz Aimoré, é propício para esse tipo de golpe. “O maior desafio aqui é provar que a fraude realmente ocorreu e identificar os responsáveis”, afirma. “Isso porque as transações em blockchain não podem ser desfeitas, e os golpistas muitas vezes operam fora do país, dificultando a recuperação do dinheiro perdido”, acrescenta.
A recorrência de processos sobre esquemas fraudulentos, segundo Camilla Jimene, revela que as vítimas de fraudes estão acionando o Judiciário em busca de responsabilização e ressarcimento dos prejuízos. “Esse não é um problema relacionado somente a criptoativos, e acompanha a tendência de crescimento de fraudes digitais no Brasil, ano após ano, em razão da falta de alfabetização digital dos usuários frente à popularização da tecnologia”, explica a advogada.
Além disso, outros problemas comuns, destacados pelos especialistas, são invasões cibernéticas de carteiras digitais ou corretoras, além de perda de acesso a carteiras (por esquecimento de senhas ou problemas em chaves de segurança). Dependendo do caso concreto, diz Aimoré, empresas que guardam criptomoedas para os clientes podem ser responsabilizadas judicialmente por falhas de segurança.
“Já lidamos com casos em que clientes tiveram suas carteiras virtuais de criptoativos hackeadas e ingressaram com ação para responsabilizar as custodiantes dos criptoativos por falha na prestação de serviços”, afirma.
Dados da Receita Federal mostram que não só houve crescimento do número de declarantes de criptomoedas, mas do valor envolvido nas operações no decorrer dos últimos cinco anos. No Brasil, cerca de 187 mil pessoas físicas e jurídicas transmitiram a declaração de criptoativos para a Receita em 2019. Em novembro de 2024, esse número subiu para cerca de 3 milhões. Além disso, o volume das transações reportadas foi de R$ 4 bilhões em agosto de 2019 e alcançou a cifra de R$ 40 bilhões em novembro de 2024.
Com esse mercado em forte expansão, um ponto importante, segundo especialistas, é a regulamentação da Lei nº 14.478, de 2022, que trata da prestação de serviços de ativos virtuais. De acordo com Gabriel Stanton, do escritório Souto Correa Advogados, espera-se que a regulamentação do mercado de criptomoedas pelo Banco Central defina as instituições autorizadas pela autarquia para prestar tais serviços. “Assim, será possível garantir transparência a respeito das instituições autorizadas para combater eventuais fraudes no setor, de modo a reduzir processos judiciais”, diz.
Ainda há a perspectiva de que sejam definidos, na regulamentação, segundo Aimoré, os critérios que as empresas que prestam serviços com criptomoedas, conhecidas como Vasps (virtual asset service providers), devem seguir para operar no Brasil e como será garantida a segurança dos ativos dos clientes. O Banco Central, afirma ele, precisa especificar quais criptomoedas e ativos digitais estarão sob sua regulamentação e quais os motivos que podem levar ao encerramento de atividades de uma Vasp.
O Decreto nº 11.563/2023 determinou que o Banco Central também regulará criptoativos usados como meios de pagamento, como as stablecoins (moedas digitais que têm seu valor atrelado a ativos reais, como o dólar). Já a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) será responsável por regulamentar os criptoativos classificados como valores mobiliários, como os tokens de investimento. “Com essas definições, juízes terão diretrizes mais claras, evitando decisões inconsistentes sobre criptomoedas”, afirma Aimoré.
Fonte: Valor Econômico, 26 de fevereiro de 2025