O Superior Tribunal de Justiça, por meio de decisão proferida em 24 de novembro de 2020 (Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial n.º 1.611.717 – DF), estabeleceu um precedente relevante acerca da liberdade contratual das locações em shopping centers e, também, acerca das ações renovatórias de maneira geral.
Resumidamente, o STJ entendeu pela validade de cláusula contratual que estabelece previamente a forma de cálculo para o valor do aluguel, a ser fixado em futura ação renovatória. E considerou que esta cláusula não pode ser afastada quando houver dissonância entre o valor previsto em contrato e aquele estabelecido por meio de perícia avaliatória, executada no bojo da demanda renovatória.
A disposição contratual analisada determina que, quando de futura ação renovatória, o aluguel mensal será simplesmente incrementado em 25% (vinte e cinco por cento). Este será o valor mínimo do aluguel, independentemente do valor de mercado do imóvel à época da renovação.
O Superior Tribunal de Justiça considerou que, em se tratando de locação comercial em shopping center, aplica-se a norma do artigo 54 da Lei 8.245 de 1991, a Lei do Inquilinato, segundo a qual “Nas relações entre lojistas e empreendedores de shopping center , prevalecerão as condições livremente pactuadas nos contratos de locação respectivos e as disposições procedimentais previstas nesta lei”.
Ocorre que o artigo 54 da Lei do Inquilinato fixa uma norma geral, que não prevalece sobre as demais disposições específicas do texto legal. Especialmente quanto estas disposições específicas veiculam regras de ordem pública, que não podem ser afastadas por norma contratual.
Neste sentido a Lei 8.245 de 1991 estabelece que o inquilino, quando da petição inicial da ação renovatória de locação, deve indicar as “condições oferecidas para a renovação da locação” (artigo 71, IV), especialmente o aluguel a vigorar para o novo período de vigência do acordo locatício. Já o locador, em contestação, pode recusar a oferta por “não atender, a proposta do locatário, o valor locativo real do imóvel na época da renovação, excluída a valorização trazida por aquele ao ponto ou lugar” (artigo 72, II), e pode apresentar contraproposta de aluguel. Nesta última situação o proprietário do imóvel deverá “apresentar, em contraproposta, as condições de locação que repute compatíveis com o valor locativo real e atual do imóvel” (artigo 72, parágrafo primeiro).
Vê-se, assim, que os artigos acima mencionados indicam a necessidade de se verificar, em ação renovatória de locação, e havendo divergência entre as partes, o justo valor do locativo para o novo período de vigência do acordo. É com base nestas normas que a doutrina denomina as ações renovatórias, assim como as revisionais de aluguel, de “lides de acertamento”, na medida em que cabe ao Poder Judiciário, por meio de perícia técnica executada sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, estabelecer o valor do aluguel.
Veja-se neste sentido o entendimento de Sylvio Capanema de Souza (“A Lei do Inquilinato Comentada”, 8ª Edição, Ed. Forense, p. 360): “Na ação renovatória sempre se terá em mira que ali se defrontam duas propriedades igualmente fortes: a imobiliária, por parte do locador, e a do fundo de comércio, por parte do locatário. Não há necessidade, portanto, de proteger de maneira especial a uma das partes, em detrimento da outra, já que elas se equilibram economicamente, ao contrário do que ocorre, em geral, na locação para fins residenciais. Recomenda-se, assim, que a renovação se faça em estrita obediência à situação do mercado, sempre por aluguel justo e atual, que remunere, com dignidade, o capital investido.”
Conforme o entendimento acima transcrito, na ação renovatória deve haver a fixação do locativo “em estrita obediência à situação do mercado”. E não poderia ser diferente, na medida em que estas demandas visam equilibrar dois direitos à propriedade, ambos dotados de proteção constitucional: o direito ao ponto comercial, pelo inquilino, e o direito à propriedade imobiliária, pelo locador.
Entendemos, portanto, que a cláusula que fixa previamente o valor de locação ofende o teor das normas estabelecidas nos artigos 71, IV; e 72, II e parágrafo primeiro da Lei do Inquilinato, sendo nula de pleno direito. Mas há outra norma legal que também recomenda esta interpretação da Lei 8.245 de 1991.
O artigo 45 da Lei do Inquilinato estabelece que “São nulas de pleno direito as cláusulas do contrato de locação que visem a elidir os objetivos da presente lei, notadamente as que proíbam a prorrogação prevista no art. 47, ou que afastem o direito à renovação, na hipótese do art. 51, ou que imponham obrigações pecuniárias para tanto”.
Este artigo, que claramente veicula norma de ordem pública – inafastável, portanto, por disposição contratual – reforça o argumento anterior, no sentido que não é possível a prefixação do aluguel, por contrato, em futuras ações renovatórias. E isto porque o texto da Lei 8.245 de 1991 exige que, na hipótese de discordância entre as partes, o locativo seja estabelecido de forma compatível com “o valor locativo real e atual do imóvel”, ou seja, por meio de perícia. E a cláusula sob análise claramente visa elidir os objetivos da Lei do Inquilinato.
Há mais, entretanto. A norma também proíbe que, por normas contratuais, seja afastado o direito à renovação contratual, ou se imponham obrigações pecuniárias para tanto.
O motivo para tal disposição tem origem histórica: a ação renovatória de locação foi estabelecida para evitar que, ao final dos contratos de locação comercial, os locadores cobrassem valores para a prorrogação da relação locatícia (as “luvas), sob pena de despejarem seu inquilino e aproveitarem-se da valorização trazida ao local pelo antigo locatário.
E a Lei do Inquilinato expressamente proíbe, sob pena de nulidade, a imposição de obrigações pecuniárias aos inquilinos como condição para o manejo da ação renovatória. Conforme Waldir de Arruda Miranda Carneiro (“Anotações à Lei do Inquilinato”, São Paulo: RT, p. 302), “O que o art. 45 proíbe é a imposição de ônus para a renovação; não há nada a respeito da contratação originária. Aliás, isso é bastante coerente, eis que a finalidade precípua da proteção renovatória é garantir a estabilidade da relação locatícia, sem que o locador se locuplete à custa do trabalho do inquilino”.
Entendemos que, para os fins do artigo 45 da Lei 8.245, não há diferença entre uma cláusula que estabeleça a cobrança de uma determinada quantia do inquilino, quando da renovação contratual, e outra que estabeleça previamente um certo valor para o aluguel do período de renovação, independentemente do valor de mercado do imóvel à época. Ambas as disposições implicam na cobrança de uma quantia do inquilino, no momento da prorrogação contratual, que não guarda relação com o justo valor de mercado do aluguel.
Concluímos, portanto, e com o devido respeito ao entendimento do Superior Tribunal de Justiça, que a cláusula que estabelece previamente o valor do aluguel quando da futura demanda renovatória, ou que estabelece um valor mínimo do aluguel quando daquele evento, é nula de pleno direito por consistir em verdadeira burla da intenção do legislador, conforme estabelecida nos artigos artigos 71, inciso IV; 72, inciso II e parágrafo primeiro; e 45, “caput”, todos da Lei do Inquilinato.
*Francisco dos Santos Dias Bloch é mestre e pós-graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É advogado formado pela PUC/SP e atua em São Paulo, no escritório Cerveira, Bloch, Goettems, Hansen & Longo Advogados Associados, nas áreas de Direito Contencioso Cível e Direito Imobiliário
Artigo publicado: Estadão – Blog Fausto Macedo, 29 de janeiro de 2021