Análise de especialistas se deve a proposta do governo de trocar lei de cotas por 2 salários mínimos
Arthur Gandini
Do Portal Previdência Total
O governo enviou ao Congresso o PL (Projeto de Lei) 6.159/2019, que cria a opção para empresas trocarem o cumprimento de cotas de contratação de deficientes pelo pagamento de valor equivalente a dois salários mínimos (R$ 1.996) à União. O montante pago, conforme a proposta, seria destinado ao financiamento de programa governamental voltado à reabilitação física e profissional, que ainda deve ser criado. A mudança surge em meio à dificuldade de as empresas cumprirem as cotas e pode ameaçar ou mesmo significar o fim de política de quase três décadas voltada à inclusão de PCDs (Pessoas com Deficiência), avaliam especialistas em direito do trabalho.
Entre 2010 e 2017, o percentual de trabalhadores com esse perfil no mercado de trabalho formal subiu de 0,69% para 0,95%, conforme números da Rais (Relação Anual de Informações Sociais), divulgada pelo Ministério da Economia.
Atualmente, a lei de cotas (Lei 8.213/1991) determina que empresas com 100 ou mais empregados devem preencher cotas de contratação de PCDs, de modo que empresas com até 200 empregados devem ter no mínimo 2% de trabalhadores com deficiência em seu quadro de funcionários. O percentual sobe para 3% no caso de empresas que tenham de 201 a 500 funcionários; para 4%, no caso de 501 a 1.000 trabalhadores; e para 5% no caso de empresas que tenham a partir de 1.001 funcionários contratados.
“Esse projeto encaminhado pelo governo incentiva as empresas a deixar de cumprir as cotas, visto que sairá mais barato o pagamento dos dois salários mínimos do que a contratação e capacitação de uma pessoa, que, por sua vez, teria todos os direitos previstos na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho)”, alerta Bianca Canzi, advogada especialista em direito do trabalho do escritório Aith, Badari e Luchin Advogados.
O também especialista em direito do trabalho Felipe Rebelo Lemos Moraes, advogado do escritório Baraldi Mélega Advogados, entretanto, pondera que hoje as empresas enfrentam cenário de extrema dificuldade para cumprir a integralidade das cotas. “A maior dificuldade é encontrar postos compatíveis com as deficiências. Isso porque, em determinados segmentos, é extremamente difícil adaptar o posto de trabalho. Não somente a função deve ser compatível com a deficiência do trabalhador, mas todo o ambiente deve ser adaptado, o que nem sempre é possível, principalmente em atividades rurais”, afirma.
A legislação hoje proíbe a dispensa de um empregado portador de deficiência ou reabilitado sem que seja feita a contratação de outro na mesma condição, com a exceção do caso em que o funcionário desligado atuasse por meio de contrato temporário de até 90 dias. O desrespeito às regras pode resultar em multas para as empresas por parte dos órgãos fiscalizadores e até mesmo na instauração de procedimento no MPT (Ministério Público do Trabalho) para estabelecimento de TAC (Termo de Ajustamento de Conduta).
O descumprimento das cotas também costuma chegar à Justiça do Trabalho quando as empresas, por exemplo, buscam anular as multas aplicadas. “A jurisprudência analisa se a empresa ao menos se esforçou para contratar essas pessoas. Acredito que a dificuldade na contratação está intimamente ligada ao modelo de educação das escolas do Brasil, o que interfere na mão de obra qualificada na fase adulta. O projeto visa atingir diretamente essas pessoas, que tanto sofrem desde cedo para se integrar à sociedade. Pouca política pública é feita para preparar essas pessoas”, analisa Rafael Jacopi, advogado especialista em direito do trabalho do escritório Stuchi Advogados.
DEMISSÃO E CÁLCULO
Entre as mudanças que o projeto do governo traz está o fim da proibição das dispensas sem que haja a contratação de outro trabalhador deficiente. Conforme os especialistas, após eventual fiscalização nas empresas, isso deve fazer com que as PCDs sejam demitidas e substituídas por outras sem deficiência. “O que já ocorre de maneira irregular, como forma de driblar a fiscalização, será facilitado por lei”, critica Flavio Gonzalez, supervisor do Serviço de Inclusão Profissional do Instituto Jô Clemente.
A proposta ainda faz alterações na base de cálculo das cotas, de modo que trabalhadores com deficiência grave sejam contados em dobro e inclui a contratação de aprendizes. “A possibilidade de contratação de aprendizes ocorre atualmente a título de exceção. A contratação, caso seja aprovado o projeto como se propõe, acabará sendo utilizada de modo predominante, já que o custo da aprendizagem é menor para o empregador”, prevê Gonzalez.
Também serão excluídos do cálculo atividades perigosas ou incompatíveis com a limitação do trabalhador, assim como trabalhadores contratados em jornada a tempo parcial de 26 horas semanais que enfrentam a dificuldade para serem atendidos pelas cotas. Na opinião de Fabiano Zavanella, mestre em direito do trabalho e advogado sócio do escritório Rocha, Calderon e Advogados Associados, a exclusão segue critério puramente matemático e não leva em conta a especificidade de cada atividade. “Tal peculiaridade poderia ser bem enfrentada pela negociação coletiva com a participação do sindicato, que conhece efetivamente o setor em questão.”
Aos 28 anos, legislação ainda é pouco conhecida
Embora a lei de cotas tenha completado 28 anos de existência em julho, números demonstram que ainda há pouco conhecimento sobre a legislação.
Estudo divulgado em 2017 pela consultoria i.Social apontou que 30% das lideranças de empresas ouvidas pela pesquisa diziam que nunca ouviram falar ou pouco sabem sobre a lei de cotas. A pesquisa mostrou ainda que 88% do total de respondentes, que também incluiu profissionais de RH (Recursos Humanos) e funcionários das empresas, afirmavam que a contratação de PCDs era realizada apenas para o cumprimento da legislação.
A percepção desse impacto, entretanto, é diferente entre os trabalhadores. Pesquisa do Ministério Público do Trabalho em São Paulo, divulgada na última semana e que ouviu trabalhadores com deficiência em São Paulo e na Região Metropolitana apontou que 89% dos entrevistados se consideram ajudados pela legislação. Para 86% dos entrevistados, a lei promove o aumento da visibilidade social e 82% creditam a ela o aumento do poder aquisitivo das PCDs.
“Acredito que a lei realmente ajuda as pessoas com deficiência na inclusão no mercado e na sociedade em si, de modo que o resultado do levantamento demonstra alto índice de inclusão, sendo que o acolhimento do projeto de lei diminuiria e muito os índices mencionados”, opina Daniel Ferreira Martins, advogado trabalhista do escritório Cerveira, Bloch, Goettems, Hansen e Longo Advogados Associados.
Para que a proposta seja aprovada pelo Congresso, é necessário que passe pela análise dos parlamentares em comissões na Câmara dos Deputados e em duas votações no plenário. Em seguida, o mesmo deverá acontecer no Senado Federal. O governo poderá promover vetos na versão final do projeto, que seriam depois derrubados ou mantidos pelos deputados e senadores.
Na opinião da procuradora do MPT-SP (Ministério Público do Trabalho de São Paulo) Elisiane dos Santos, o governo deveria ter ouvido as pessoas atingidas pelo projeto antes de fazer a proposta. “Não houve qualquer processo de escuta e consulta a pessoas com deficiência, órgãos ou instituições que atuam na promoção da inclusão. Não é aceitável que se pretenda desconstruir legislação sedimentada ao longo de décadas. O que deveria se discutir é justamente o cumprimento da lei para assegurar o direito ao trabalho desse segmento da população.”
Fonte: Jornal Diário do Grande ABC, 9 de dezembro de 2019