Mario Cerveira Filho*
A alienação de imóvel de ascendente para seus descendentes encontra na lei determinados limites, os quais, caso inobservados podem gerar a anulação do negócio.
A legislação pátria, desde o Código Civil de 1.916, em seu artigo 1.132, já impunha condições para validação dessa modalidade de negócio, justamente para impedir a ocorrência de fraude por parte de ascendente que, com o objetivo de reduzir o quinhão hereditário de certo herdeiro busca a alienação de seus bens aos outros membros da prole, com o fito de se esquivar da inevitável colação, proveniente da doação.
Isso porque, a doação de ascendente para descendente importará no adiantamento da legítima, de modo que, quando da abertura da sucessão os bens doados serão trazidos à colação, instituto que, aliás, tem pontualmente como cerne igualar as legítimas. Nesse diapasão, a pretensão do ascendente restaria frustrada, acarretando na inocuidade de seu esforço em beneficiar um de seus descendentes.
Desta feita, a lei prevendo factível situação, qual seja, doação camuflada em simulação de venda e compra que pretendesse transparecer negociação onerosa e justa, condicionou a eficácia de alienações envolvendo as partes aqui em debate, a necessidade de anuência dos demais descendentes.
O Novo Diploma Civil, por sua vez, em seu artigo 496, deu nova redação ao seu dispositivo antecedente, incluindo o cônjuge do alienante no rol daqueles que necessitam anuir com a venda, para permitir seu aperfeiçoamento, in verbis:
“Artigo 496. É anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem consentido”.
O parágrafo único do artigo em questão, limita a obrigatoriedade de intervenção do cônjuge, apenas quando o regime da união tratar-se de separação obrigatória.
“Parágrafo único. Em ambos os casos, dispensa-se o consentimento do cônjuge se o regime de bens for o de separação obrigatória”.
Como já mencionado, a intenção do legislador é evidente, no sentido de evitar liberalidades disfarçadas de negócios reais e onerosos em manifesto prejuízo de certos herdeiros, haja vista, que as conseqüências nesta modalidade de operação se verificam substancialmente mais nocivas no que nas doações, considerando-se que nestas os bens doados voltam à colação, enquanto que os vendidos não.
A limitação objeto deste estudo não se restringe apenas a venda direta de pai para filho, por exemplo, também, tem-se por anulável a venda realizada com a intervenção de terceiro, na qualidade de pessoa interposta. A primeira, aliás, pode ser facilmente constatada por intermédio de consulta ao instrumento correspondente, no qual se verá ou não a anuência dos demais filhos, ao contrário desta última, onde a comprovação necessita de maior empenho.
De qualquer forma, a utilização de pessoa interposta objetivando ludibriar o texto legal, isto é, o ascendente efetivando a venda de um bem a suposto estranho, que, por sua vez o revende ou o doe ao descendente daquele, também é anulável, vez que, da mesma forma violará a lei, só que indiretamente e, sem dúvida, com indícios de fraude mais latentes.
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em acórdãos proferidos, retrata de forma objetiva o entendimento jurisprudencial sedimentado:
“Compra e venda – Imóveis – Ascendente a descendente – Direta e por interposta pessoa – Violação em ambos os casos do artigo 1.132 do Código Civil – Prescrição – Inocorrência, quer seja vintenária ou quadrienal – Recurso não provido. (Tribunal de Justiça de São Paulo – Apelação Cível n. 30.158-4 – Mirassol – 4ª Câmara de Direito Privado – Relator: Cunha Cintra – 03.09.98 – V. U.)”
Independente das circunstâncias nas quais se proceda a venda, quer seja diretamente do ascendente para o descendente ou através de pessoa interposta, em ambas as hipóteses, far-se-á indispensável à anulação do negócio, a prova da simulação caracterizadora da fraude.
A intenção do legislador tal como anteriormente ventilado, foi a de evitar a fraude fundada na venda simulada de bens que se preste para acobertar doações de fato, prejudicando assim, a legítima de um ou mais herdeiros.
O artigo aplicável à espécie (art. 496 do C.C. 2002) faz previsão expressa no que tange a conseqüência jurídica decorrente da realização do negócio sem que atendido o requisito lá previsto. O ato é anulável.
E sendo anulável necessita, incondicionalmente, de comprovação da simulação do negócio. Com base nesta premissa, há que se permitir por parte do filho adquirente a produção de prova contrária às alegações de fraude à lei. Até porque, a fraude não se presume, deve ser provada, restando imprescindível que se ateste o consilium fraudis entre as partes.
Inexistindo prejuízos dos demais herdeiros, sendo o preço do negócio justo e real, fraude não haverá, e validado o ato estará, pois, a mera venda de pai para filho, por exemplo, não importa em sua anulabilidade.
Pode-se concluir a partir do acima disposto, que a alienação de bem imóvel (móveis, inclusive) de ascendentes para seus descendentes, encontra restrições legais, entraves estes, que objetivam evitar fraudes oriundas de negócios simulados que detenham como foco preterir herdeiros em detrimento de outros, no que se refere ao quinhão hereditário garantido por lei.
Portanto, mesmo respeitando-se as teses contrárias, não se pode afirmar que o simples fato da venda de um bem nas circunstâncias ora descritas importará na ineficácia do ato,
na medida em que, atentando-se ao espírito da lei, impor-se-á a comprovação de fraude entre os contratantes, para então, aplicar-se a sanção legal.
*Advogado e sócio do escritório Cerveira Advogados Associados.
Artigo publicado: Gazeta Mercantil, 24 de janeiro de 2007