3ª Turma entendeu que situação estaria nas exceções previstas para o bem de família
Adriana Aguiar e Marcela Villar
A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) admitiu, pela primeira vez, a penhora de um imóvel considerado bem de família para o pagamento de reforma. Para os ministros, o caso entraria nas exceções previstas na Lei nº 8.009, de 1990, que trata da impenhorabilidade do bem de família.
No julgamento, os ministros destacaram que se trata do primeiro precedente sobre reforma de imóvel. Até então, segundo a relatora do caso, Nancy Andrighi, existiriam apenas decisões da 3ª e da 4ª Turmas admitindo a penhora de imóveis para o pagamento de dívidas de construção.
Em um breve voto, a ministra Nancy Andrighi afirmou que a situação seria semelhante aos dos casos que envolvem construção, admitindo a penhora do bem de família. O entendimento da relatora foi seguido à unanimidade pelos demais julgadores da 3ª Turma (REsp 2082860).
De acordo com o processo, a proprietária reside há cerca de 18 anos no imóvel e defendeu que trata-se de bem de família. A dívida gerada seria oriunda de contrato verbal firmado com duas decoradoras de interiores, no valor estimado de R$ 5 mil. Ela teria quitado essa quantia inicial, mas não os honorários das profissionais, de 10% sobre o total, para gerenciamento, fiscalização, administração e responsabilidade técnica – na época de R$ 500. A ação pede, além dos honorários e ressarcimento por gastos extras, indenização por danos morais.
Em sentença, a juíza Rosali Terezinha Chiamenti Libardi, da 5ª Vara Cível de São Leopoldo (RS), decidiu pela extinção do pedido, por não haver documentação que comprove quais as reais quantias envolvidas na reforma, o que impossibilitaria a definição do que deveria ser pago.
As decoradoras recorreram. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) reformou a sentença e determinou a penhora. Para os desembargadores, a situação se enquadra à regra de exceção à impenhorabilidade do bem de família prevista no artigo 3º, inciso II, da Lei nº 8.009, de 1990.
Esse artigo diz que a impenhorabilidade é oponível, salvo se movido “pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato”.
No julgamento do STJ, a ministra se baseou em precedentes de turmas sobre construção. Um deles foi julgado na 3ª Turma, em junho de 2023. Os ministros, na sessão, admitiram a penhora do bem de família para quitar dívida de contrato de empreitada global celebrado para a construção do próprio imóvel (REsp 1976743).
A relatora do processo também foi a ministra Nancy Andrighi. No julgamento, lembrou que o bem de família recebe especial proteção do ordenamento jurídico. No entanto, acrescentou que a impenhorabilidade não é absoluta e que a própria lei estabeleceu diversas exceções a essa proteção – entre elas, a hipótese em que a ação é movida para cobrança de dívida decorrente de financiamento para construção ou compra de imóvel.
Além disso, citou precedente em que a 4ª Turma, ao enfrentar questão semelhante (REsp 1.221.372), entendeu que a palavra “financiamento”, inserida no inciso II do artigo 3º da Lei nº 8.009, de 1990, não restringiu a impenhorabilidade às situações de compra ou construção com recursos de agentes financiadores.
A advogada das decoradoras, Tatiana Pinheiro, do escritório Tatiana Pinheiro Advocacia, diz que suas clientes – uma arquiteta e uma designer de interiores – não foram pagas integralmente pelo serviço. Por isso, pediu a penhora do imóvel.
Segunda Tatiana, o valor inicial da reforma, de R$ 5 mil, chegou a R$ 13 mil na fase de cumprimento de sentença. Alguns serviços a mais foram solicitados ao longo dos trabalhos, afirma, mas não foram pagos. Antes de pedir a penhora da casa, acrescenta, tentou-se o mesmo com outros bens. Porém, já estavam expropriados para o pagamento de outras dívidas.
“A única coisa que sobrou foi a própria casa que minhas clientes reformaram, que teve um aumento de valor após a reforma, objeto de trabalho delas”, diz. A casa reformada é avaliada em R$ 400 mil, mas também há discussão judicial em torno do valor – a proprietária alega que vale mais. Se a decisão for mantida, a casa será vendida em leilão. O arrecadado será usado para o pagamento da dívida e o saldo irá para a proprietária.
De acordo com o advogado Júlio Morais, sócio do escritório Lopes Muniz Advogados, o bem de família existe para dar segurança e efetividade ao princípio da dignidade da pessoa humana, para que os integrantes não sejam despejados do imóvel por uma dívida civil comum. Porém, não é “uma carta branca” para outros tipos de dívida, como as adquiridas para o próprio imóvel.
“Existe uma série de exceções à regra de proteção. A decisão [do STJ] foi uma extensão interpretativa do artigo que permite executar imóvel se usado financiamento para a construção desse imóvel. É o mesmo raciocínio no caso da reforma”, diz.
Procurado pelo Valor, o advogado Alexandre Moraes da Silva, representante da contratante dos serviços de reforma, informou que vai recorrer da decisão.
Fonte: Valor Econômico, 7 de fevereiro de 2024