Até agosto, 48% das 167 decisões da Corte cancelaram o entendimento da esfera trabalhista
Adriana Aguiar
Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) aceitaram, neste ano, quase metade das reclamações apresentadas para anular decisões da Justiça do Trabalho que concederam vínculo de emprego a prestadores de serviços ou trabalhadores contratados como pessoa jurídica – os chamados “pejotas”. É o que mostra estudo realizado pela FGV Direito SP, obtido com exclusividade pelo Valor.
Até agosto, em uma nova onda de recursos sobre o tema, foram proferidas 167 decisões monocráticas (de apenas um ministro) e em 80 delas cancelou-se o entendimento da esfera trabalhista (48%). O índice é considerado significativo por advogados, já que o levantamento da FGV destaca que 29% dos pedidos apresentados por empresas foram negados por questões processuais – entendeu-se que não era o momento certo para o recurso por não haver acórdão de segunda instância ou do Tribunal Superior do Trabalho (TST).
Nas reclamações, as empresas alegam que a Justiça do Trabalho tem desrespeitado julgados do STF, principalmente o que admitiu a possibilidade de terceirização ampla e irrestrita – atividades meio e fim (ADPF 324).
Esse movimento do Supremo gerou insatisfação entre advogados, juízes, procuradores, acadêmicos e sindicalistas de todo o país. Um total de 64 entidades assinaram ontem uma carta pública para os ministros. Defendem a competência constitucional da Justiça do Trabalho.
Coordenadora do estudo “Terceirização e Pejotização no STF: Análise das Reclamações Constitucionais”, a professora de Direito do Trabalho e Previdenciário da FGV, Olívia Pasqualeto, afirma que chama atenção o grande número de decisões em reclamações sobre o tema. “Isso demonstra o quão comum é discutir o assunto por meio desse tipo de recurso”, diz.
A partir do estudo, segundo Olívia, comprova-se que os ministros, em suas decisões, “têm se mostrado simpatizantes a outras formas de contratação e que o futuro parece ser validar outras modalidades de trabalho, inclusive por meio de pessoas jurídicas”.
Na opinião da advogada Alessandra Boskovic, do Mannrich e Vasconcelos Advogados, o índice de 48% de admissão dessas reclamações é bem expressivo. “As reclamações têm um rito processual bastante específico e precisam ser muito bem elaboradas”, afirma. “Sinaliza uma posição clara do Supremo em legitimar outras formas de prestação de serviço, reconhecendo que existe dignidade para além da CLT, inclusive em casos que envolvem pejotização.”
Ela destaca que por muito tempo a Justiça do Trabalho usou o termo pejotização como sinônimo de fraude. “Mas a pejotização, a princípio, nada mais é do que a prestação de serviços por pessoa jurídica”, diz.
Para Alessandra, há no STF um movimento de “relegitimação de contratos civis”. Ela lembra que, antes da edição da CLT, em 1943, havia relações civis de prestação de serviços. “De lá para cá, o mercado de trabalho mudou muito e agora existe essa nova valorização da regulação civil. Isso não significa negar a CLT ou o direito do trabalho, mas reconhecer que nem tudo precisa estar na relação de emprego.”
A advogada destaca que as atividades aceitas sem vínculo de emprego são justamente as que têm leis próprias, com exceção de motoristas de plataforma. Foram localizadas, em levantamento realizado pelo Mannrich e Vasconcelos Advogados, decisões a favor de novas relações de emprego para consultor e analista de sistema, corretores de imóveis, advogados, dentista, corretor de seguros, médico, prestador de serviço da área de saúde, transportador de carga, agente autônomo de investimento e motorista de aplicativo.
Caroline Marchi, do Machado Meyer Advogados, considera esse movimento como uma espécie de correção de rota da Justiça do Trabalho, “que tem usado subterfúgios para se esquivar da aplicação do julgamento sobre terceirização”. “Não existe de fato impedimento de que existam outras formas de contratação, principalmente nas atividades que já têm legislação própria, como o Supremo vem decidindo”, diz.
Essa onda de recursos é a terceira identificada pelo estudo da FGV. Ela chega a 12,66% do total das reclamações recebidas pelo Supremo. E deve ter sido impulsionada, principalmente, por conta da tese do Supremo sobre terceirização, segundo Olívia Pasqualeto. A tese aprovada pelos ministros diz que “é lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas” (Tema 725).
Mas as reclamações não discutem apenas a terceirização, também outras modalidades de trabalho. Elas citam, por exemplo, a validade dos contratos de parceria para trabalhadores do ramo da beleza, como cabelereiros, barbeiros e manicures (ADI 5625) e os de representação comercial autônoma (RE 606003).
Essa nova onda só não é maior do que o pico enfrentado entre 2018 e 2020, que chegou a 14,07% do total de reclamações. Naquela época, eram ações que, em geral, discutiam a terceirização. Foram movidas em decorrência da reforma trabalhista, que ampliou as possibilidades de terceirização também para a atividade principal da contratante, e do julgamento do Supremo (ADPF 324 e Tema 725).
Nessa nova leva de ações, acabaram se formando duas correntes no Supremo, segundo o estudo da FGV. Uma mais restritiva, que avalia estrita conexão ao que está sendo reclamado e o parâmetro – que eram capitaneadas pelo ministro Edson Fachin e em algumas decisões por Luiz Fux. E outra mais ampliada, que autoriza outras modalidades de trabalho ao levar em consideração como parâmetros os casos sobre terceirização – o que tem sido adotado pelos demais ministros.
Esse cenário, contudo, mudou um pouco mais após a finalização do estudo, segundo Olívia. Em decisão de setembro, o ministro Edson Fachin se rendeu ao entendimento da maioria. Até então, ele se posicionava contra essas reclamações. Para ele, caberia à Justiça do Trabalho analisar, com base em provas, se existiria ou não vínculo de emprego.
Esse novo posicionamento de Fachin, afirma a professora da FGV, deve estimular o ajuizamento de novas reclamações. De acordo com ela, ainda existe o receio que esse tipo de decisão acabe por esvaziar a competência da Justiça do Trabalho. “Contudo, só se pode analisar se existe ou não uma fraude com a análise de provas, no plano fático, e isso gera uma preocupação no momento em que esses processos estão sendo resolvidos no STF, que não pode analisar provas ”, diz Olívia.
A questão preocupa a Procuradoria-Geral da República (PGR). Em uma das reclamações levadas ao STF, o então procurador-geral Augusto Aras pediu para que fosse uniformizada a jurisprudência sobre o tema (Rcl 60620). Segundo ele, seria inadmissível o uso de reclamações nesses casos porque as teses fixadas no julgamento sobre terceirização não tratam especificamente dessas situações.
No fim de outubro, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) também se manifestou, na mesma ação da PGR. Segundo o órgão, a prestação de serviço por profissionais na modalidade “PJ” não é, por si só, considerada fraude à relação de emprego. Mas existiriam contratos firmados apenas para driblar a legislação, sem se considerar a realidade. “Tal artifício aniquilaria o dever que vincula profissionais liberais qualificados ao pagamento de imposto de renda e desfalcaria o caixa da Previdência Social, afastando-se da incidência da contribuição social patronal”, diz.
Fonte: Valor Econômico, 14 de novembro de 2023