Decisão é a primeira favorável à União em colegiado de segunda instância e envolve troca de papéis na fusão entre os grupos Hermes Pardini e Fleury
Beatriz Olivon
A Fazenda Nacional obteve, no Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF-6), decisão que autoriza a incidência de Imposto de Renda (IRPF) sobre incorporação de ações em processos de fusão ou aquisição. É o primeiro precedente de um colegiado de segunda instância favorável à União nessa disputa, que, por ora, é vencida pelos contribuintes.
Existem 47 processos sobre o assunto nos tribunais regionais federais, segundo levantamento da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), mas nem todos tiveram o mérito julgado. Um recurso já foi apresentado e aguarda julgamento no Superior Tribunal de Justiça (STJ). O número de casos, afirmam especialistas, é proporcional ao de operações com troca de ações no país e os valores são elevados.
O processo julgado pela 3ª Turma do TRF-6 envolve a operação de fusão entre os grupos Hermes Pardini e Fleury – ambos especializados em medicina diagnóstica. No caso, de acordo com o processo, a cobrança de IRPF é de R$ 194 milhões.
O valor é referente à incorporação de ações por dois dos três irmãos que eram os principais acionistas do Grupo Hermes Pardini – uma irmã obteve liminar em São Paulo para afastar a tributação. Eles tiveram suas participações no Instituto Hermes Pardini S/A substituídas por ações do Grupo Fleury S/A.
Nesses casos, a Receita Federal entende que há ganho de capital com eventual diferença positiva entre o custo de aquisição das ações da sociedade incorporada lançado pelos acionistas em declaração de IRPF e o valor de mercado/avaliação das ações por ele recebidas em contrapartida da sociedade incorporadora.
Para os contribuintes, a incorporação de ações não pode ser equiparada a uma operação de compra e venda. O negócio se baseia, de acordo com eles, na equivalência entre as participações societárias que são transferidas, possibilitando que uma ação seja trocada por outra de valor a ela compatível, mantendo-se estável a situação patrimonial dos acionistas envolvidos.
Eventual incremento patrimonial, afirmam, representaria apenas um ganho fictício ou meramente potencial, pois ainda estaria sujeito às variações do mercado, que só poderão ser mensuradas na data de resgate dessa participação.
Relator do caso na 3ª Turma, o desembargador Alvaro Ricardo de Souza Cruz entendeu, porém, que a hipótese de incidência do IRPF se concretiza com a simples aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica que implique acréscimo patrimonial. Para ele, é “desimportante”, para que se o tributo se torne exigível, que se verifique a aquisição de disponibilidade financeira imediata pelo contribuinte (processo nº 1005506-28.2023.4.06.0000).
No caso da irmã que obteve liminar em São Paulo para afastar a tributação, foi apresentado recurso pela Fazenda Nacional. A decisão, porém, foi mantida pelo desembargador Andre Nabarrete Neto, do TRF-3 (processo nº 5020129-13.2023.4.03.0000).
Para o julgador, a alegação de risco de dano ao erário não é o suficiente para reverter a liminar. “O dano precisa ser atual, presente e concreto, o que não ocorre no caso, em que apenas foi suscitado genericamente prejuízo ao erário”, afirma ele, na decisão.
De acordo com Rafael Amaral Amador dos Santos, procurador-chefe na Divisão de Acompanhamento Especial na 6ª Região, além de todas as questões jurídicas, essa tributação também envolve capacidade contributiva. “As pessoas [sócios] ganharem R$ 500 milhões em ações e não serem tributadas em nenhum centavo seria um absurdo. Diversos elementos justificam a tributação”, diz ele, acrescentando que o cerne da discussão é saber se é possível cobrar o IRPF imediatamente. “Para a Fazenda, é.”
Em segunda instância, porém, predominam decisões contrárias à União. No TRF-4, a 2ª Turma atendeu pedido de um acionista da Cia. Hering, referente à incorporação pelo Grupo Soma em 2021. Após recurso, o processo aguarda julgamento no STJ (nº 5021014-84.2021.4.04.7205).
A 2ª Turma também atendeu pedido de acionistas da Unidas (ação nº 5038377-34.2022.4.04.0000). Em outro processo proposto também por acionistas da Unidas, os desembargadores confirmaram liminar concedida pela 1ª Vara Federal de Guarapuava, no Paraná (processo nº 5038458-80.2022.4.04.0000). Em outra decisão, o mesmo colegiado, por maioria de votos, também afastou o Imposto de Renda (processo nº 5052793-42.2011.4.04.7000).
No Tribunal Regional Federal da 1ª Região, transitou em julgado, em agosto, uma decisão que afastou a tributação – nesse caso, o recurso especial ao STJ não foi aceito. O caso envolve sócio majoritário da empresa Sapeka Indústria e Comércio de Fraldas Descartáveis, que teve o controle vendido para a Hypermarcas em 2010. A decisão, proferida pela 8ª Turma, foi unânime (processo nº 1003145-62.2017.4.01.3500).
Para Tiago Oliveira Brasileiro, sócio do escritório Martinelli, o julgado do TRF-6 não altera o panorama atual de decisões majoritariamente favoráveis aos contribuintes. A incorporação de ações, destaca, é um negócio jurídico típico, previsto na Lei das S.A., e tem requisitos formais e consequências jurídicas diferentes de permuta ou integralização de capital. “A grande tese para esse assunto em favor dos contribuintes é a ofensa ao princípio da tipicidade e da legalidade e são pontos que o TRF-6 não enfrentou”, afirma.
De acordo com Celso Costa, sócio do Machado Meyer Advogados, esse tipo de operação é muito utilizada na consolidação de negócios e é muito eficiente. A tributação defendida pela Receita Federal, diz, é um erro. “As pessoas físicas não recebem dinheiro com a operação. Trata-se de pura troca de ações. É uma potencial valorização, mas o IRPF não incide sobre valorização potencial, mas sobre renda efetiva, auferida”, afirma.
Procurado pelo Valor, o escritório de advocacia Sacha Calmon Misabel Derzi, que representou os irmãos no Tribunal Regional Federal da 6ª Região, não quis comentar o caso.
Fonte: Valor Econômico, 29 de setembro de 2023